OS ESCRITOS DE VIGOTSKI NO
CONTEXTO DO SÉCULO XX: CRISE DAS CIÊNCIAS E A REVOLUÇÃO RUSSA.
INTRODUÇÃO
Este trabalho se constitui
em um relato de experiência sobre os estudos e debates realizados nos encontros
do Projeto de Extensão LABBRINC (Laboratório de Jogos e Brincadeiras Vigotski)
da UEG Campus Goiânia ESEFFEGO realizado durante o ano de 2017. As obras de
Vigotski foram estudadas e discutidas nos encontros quinzenais do LABBRINC, com
a participação de alunos e professores da Universidade Estadual de Goiás.
Entretanto, fez-se necessário primeiramente analisar de forma abrangente o
contexto do início do século XX, em que Vigotski viveu e escreveu todas as suas
obras, ou seja, um contexto de crises (ciências) e de revolução (revolução
russa).
Vigotski escreveu os seus
livros em um contexto de efervescência social total. Sua terra
natal, que outrora era classista, hierarquizada e anti-semita, governada
pelos Czares e por uma burguesia conservadora e tradicional, de repente se vê
totalmente transformada e gestada pela própria classe trabalhadora. Os
trabalhadores promovem a maior de todas as revoluções sociais da história
moderna e propõe a construção de uma nova sociedade sem classes. A Revolução
Russa eclode em 1917, e com ela profundas e radicais transformações sociais. A
proposta dos trabalhadores revolucionários era a construção de uma
nova sociedade igualitária, horizontal e autônoma, com sujeitos livres e
emancipados, o que de fato ocorreu somente nos primeiros meses da revolução com
os chamados “soviets”. Fazia-se necessário, ao mesmo tempo, a construção de uma
educação também revolucionária, ou seja, uma nova educação como instrumento
para auxiliar e promover a própria revolução em andamento, para a plena
emancipação e libertação dos trabalhadores. Vigotski, neste mesmo ano de 1917
forma-se em direito e volta para Gomel (sua cidade natal) , onde começa a
lecionar Literatura e História da Arte, e posteriormente funda um laboratório
de psicologia na escola de professores. Altamente engajado nesta luta revolucionária,
propõe um curso para a formação de professores dentro de uma proposta de
educação socialista. Daí surgem os escritos e a elaboração das aulas em forma
de cadernos e apostilas, que ao final deram origem às suas primeiras obras e
livros publicados.
METODOLOGIA
Através
de encontros quinzenais com professores e estudantes de Educação Física da UEG
Campus Goiânia ESEFFEGO, realizamos
estudos sistematizados das obras de L.S. Vigotski, relacionando suas contribuições para a área
da Educação Física, especialmente no que tange aos conteúdos relacionados aos
jogos e brincadeiras. Através do estudo detalhado e sistematizado das obras de
Vigotski, e também a análise minuciosa do contexto histórico em que foram escritas
tais obras, pôde-se compreender melhor o pensamento e a própria linguagem deste
importante escritor russo, trazendo para os dias atuais as contribuições e o
legado de suas teorias, principalmente para o estudo da infância, dos jogos e da
própria Educação Física Escolar. Todos os sujeitos integrantes do projeto participaram
de forma ativa através de discussões, opiniões, debates e vivências sobre
infância, atividades lúdicas e suas relações com a Teoria Histórico Cultural de
Vigotski. Os encontros foram todos construídos de forma democrática e dialógica,
onde todos os sujeitos envolvidos, após a leitura prévia dos textos e livros de
Vigotski, realizaram suas intervenções nas discussões e deram as suas
contribuições pertinentes. As reuniões quinzenais foram realizadas no Campus
Goiânia ESEFFEGO durante os meses de setembro,
outubro e novembro de 2017. Através de leituras, discussões, análises e apontamentos
das obras de Vigotski apresentadas previamente a cada encontro, todos os
participantes se apropriam dos conceitos e teorias de L.S. Vigotski e ainda relacionam
as categorias e os temas abordados com a area da Educação Física Escolar. Todos
os relatos dos encontros foram também divulgados quinzenalmente no blog do
projeto (http://labbrincvigotski.blogspot.com.br/).
REFERENCIAL TEÓRICO
A base desta nova ciência
pedagógica de Vigotski passa a ser o materialismo histórico e dialético de Karl
Marx. O marxismo passa então a ser o paradigma principal para todos os estudos
de Vigotski, onde a própria proposta de construção de uma nova psicologia seria
a psicologia alicerçada na teoria marxista.
A
psicologia anterior, que considerava a psique de forma isolada do
comportamento, não podia encontrar o terreno verdadeiro para uma ciência
aplicada. Ao contrário, ao se dedicar a ficções e abstrações, ela sempre se
divorciava da vida real e, por isso, era impotente para se tornar a fonte que
daria origem a uma psicologia pedagógica. Toda ciência surge das demandas
práticas e, em última instância, também se orienta para a prática. Marx dizia
que os filósofos só tinham interpretado o mundo, e que já estava na hora de
transformá-lo. Essa hora chega para todas as ciências. (VIGOTSKI, 2003, p.43)
Durantes os encontros do
Projeto de Extensão LABBRINC foi discutido também as questões ideológicas
envolvidas nas proibições das obras de Vigotski durante o regime stalinista que
veio a posteriore, ainda os erros e mutilações envolvidos nas traduções de seus
livros para as línguas do ocidente. Durante o período do regime stalinista, as
obras de Vigotski foram todas confiscadas e muitas destruídas em virtude do
decreto estatal de 4 de julho de 1936, que proibia a pedologia e também a
atuação dos pedólogos na antiga União Soviética. Logo, por questões políticas e
ideológicas as obras de Vigotski praticamente desaparecem da antiga União
Soviética, findando as proibições naquele país, somente durante a década de
1950. Suas obras foram proibidas por conta das perseguições políticas de Stalin,
e também por este considerar as citações e as referencias de autores ocidentais,
utilizadas por Vigotski, como parte da chamada ideologia burguesa. No entanto, as traduções de suas obras chegam
ao ocidente cerca de trinta anos depois desta data, destacando que o mundo
neste período citado encontrava-se dividido pela Guerra Fria (polarização do mundo entre capitalismo – EUA e
comunismo – URSS). Tal polarização do mundo fez com que as traduções para o
inglês (EUA) (das quais se originam as traduções para o português) fossem todas
distorcidas e mutiladas de forma escandalosa e proposital. Mais uma vez, os
escritos de Vigotski se tornaram alvo de proibição e de perseguição,
entretanto, agora de forma mais sutil e grosseira, ou seja, na forma de
distorções e de mutilações de seus textos originais. No Brasil a editora
Martins Fontes publica em 2001 a tradução do livro Psicologia Pedagógica feita
por Paulo Bezerra, e que veio acrescido erroneamente por dois
capítulos a mais, ou seja, absurdamente contendo 21 capítulos, sendo que a obra
original continha apenas 19 capítulos ao todo. Já a publicação da editora
Artmed (utilizada em nosso grupo de estudos) foi traduzida em português por
Claudia Schilling a partir da tradução realizada pelo argentino Guilhermo
Blanck, a partir do espanhol para o português, da primeira edição original
russa, e esta tradução porém, possui maior fidedignidade do que a primeira.
Discutimos também sobre a
grave crise em que a ciência se encontrava no início do século XX. As exigências
e imposições dos métodos das ciências naturais eram as referências que deveriam
legitimar as ciências humanas, inclusive a própria psicologia. As divergências
e dicotomias entre psicologia empírica (baseada nos métodos das ciências
naturais) e psicologia racional (cujos métodos eram baseados na especulação),
ou ainda com outras denominações como ciência da alma ou ciência sem alma,
continuavam e ampliavam a crise já instalada. Qual era afinal o verdadeiro o
objeto de estudo da psicologia? Como desvencilhar da influência metafísica ou
da religião? Seria possível estudar e conhecer a consciência humana de forma
objetiva? Vigotski propõe as bases da nova psicologia pautada no materialismo
histórico dialético, tomando como ponto de partida os "velhos" conceitos
da psicologia comportamentalista da época, e de forma dialética, dando-lhe
novos sentidos e significados a partir de sua negação (tese-antítese-síntese).
Criando uma nova psicologia marxista, que não desconsideraria os aspectos
biológicos, nem tão pouco negligenciaria os condicionantes sociais, econômicos,
políticos, psicológicos, biológicos e culturais.
O
primeiro passo distintivo da nova psicologia é seu materialismo, porque
examina toda a conduta do ser humano como uma série de movimentos e reações que
possui todas as propriedades de um ser material. Sua segunda característica é
a objetividade, pois coloca como condição indispensável para suas
pesquisas a exigência de que estas se baseiem na verificação objetiva do
material. A terceira característica é o seu método dialético, que reconhece que
os métodos psíquicos se desenvolvem em uma vinculação indestrutível com todos
os demais processos no organismo e que estão subordinados exatamente às mesmas
leis de desenvolvimento que regem tudo o que existe na natureza. E, finalmente
a última característica é a base biossocial, cujo significado já foi definido
(VIGOTSKI, 2003, p.40)
O autor relata em suas
primeiras obras sobre a grave crise em que passa a ciência (psicologia) durante
as primeiras décadas do século XX. Vigotski propõe uma abordagem dialética
sobre a atual crise, resgatando o "velho material" e procurando
compreender os fatos e leis anteriores sob a ótica de novos significados e
critérios, ou seja, dar novos significados aos conceitos e leituras da velha
psicologia, na tentativa de criar a "nova ciência", que segundo o
próprio autor, naquele momento afundava em uma grave crise de seus
próprios fundamentos, mas que também se encontrava em seu período de
estruturação inicial.
RESULTADOS PARCIAIS
Descobrimos em nossos
estudos que Vigotski enfatiza nos textos a compreensão do homem dentro de uma
perspectiva "biossocial". Segundo Vigotski a grave crise na ciência
[psicológica] de sua época refere-se à forte herança do pensamento primitivo e
religioso, ou seja, da perpetuação do dualismo corpo-mente, do espiritualismo
metafísico, que considerava a psique humana isolada e divorciada da vida real,
com suas abstrações e ficções, e no outro extremo a também forte influência
positivista da psicologia norte-americana, em referência à teoria
comportamentalista, que considerava o comportamento apenas como interações
mecânicas e lineares com o meio.
Vigotski refuta o
reducionismo e o biologicismo da psicologia de sua época ao explicar o
comportamento humano com base apenas em seu aspecto comportamental-biológico,
generalizando a teoria dos reflexos-condicionados para explicar todas as
funções psicológicas superiores, o que ele denomina de "Abra-te Sésamo!". Vigotski
relata ainda a "caricatura" que faz a ciência comportamentalista ao
relacionar de forma linear os aspectos motores ao desenvolvimento das funções
psicológicas.
Portanto,
a psicologia está se transformando em uma ciência biológica, pois estuda o
comportamento como uma das formas mais importantes de adaptação do organismo
vivo ao ambiente. Por isso, considera que o comportamento é o processo de
interação entre o organismo e o ambiente, e o princípio de utilidade biológica
do psiquismo passa a ser seu princípio explicativo. (VIGOTSKI, 2003, p.39)
Porém, Vigotski defende a
tese onde somente é possível compreender o comportamento humano em
sua totalidade quando se considera o desenvolvimento dentro do complexo
contexto de seu ambiente social, ou seja, o homem num contexto biossocial.
A nova psicologia, segundo
Vigotski, deve possuir características importantes, tais como: o materialismo - a
conduta humana deve ser observada a partir dos movimentos e reações de um ser
material (o homem como ser material inconcluso); a objetividade - verificação sistemática e objetiva da
realidade; a dialética -
os processos psíquicos se relacionam com todos os demais processos no organismo
(meio, cultura, biológico, etc.) e se inter-relacionam de forma
dinâmica e indestrutível; e por fim a base biossocial - onde o comportamento do ser humano deve ser
observado dentro do complexo contexto do seu ambiente social.
Refletimos sobre a resposta
de Vigotski ao propor uma nova psicologia alicerçada sobre os fundamentos do
marxismo. A crise que engessava
psicologia dentro do biologicismo do comportamentalismo da época é duramente
criticada e colocada em xeque por Vigotski. "[...] Entretanto, o comportamento do ser humano se
desenvolve no complexo contexto do ambiente social." (VIGOTSKI, 2003, p. 39).
CONCLUSÕES
Vigotski joga nova luz
sobre os conceitos da velha psicologia, numa tentativa de explicar e
compreender os fatos e leis anteriores, sobre um novo olhar, com uma nova
linguagem e ainda pautado em novos critérios, numa incansável tentativa de
superar a "grave crise de seus próprios
fundamentos".
Durante os encontros e
reuniões do LABBRINC, discutimos as características do novo método que Vigotski
utiliza para estudar e construir a nova psicologia, ou seja, a nova psicologia
pautada no materialismo histórico e dialético. As quatro características
citadas por Vigotski e que são os "traços distintivos da nova
psicologia" são: o Materialismo, a Objetividade, a Dialética e a
base Biossocial.
Vigotski destaca a crise
estrutural por que passava a ciência psicológica da época, mostrando que uma
psicologia pautada apenas em abstrações e ficções, e ainda separando a psique
humana de forma isolada do comportamento, não era capaz de originar uma
psicologia pedagógica, já que se era completamente divorciada da vida real.
Vigotski cita magistralmente
em sua obra a 11ª Tese de Marx sobre Feuerbach: "Os filósofos apenas interpretaram o
mundo de diferentes maneiras; agora é preciso transformá-lo” (Marx apud
Vigotski, 2003, p.43). Nesta passagem Marx realiza
a crítica à tradição do pensamento pautado numa visão idealista e separada da
realidade. Marx propõe a passagem do idealismo para o materialismo, da mera
interpretação para a transformação. Vigotski, frente à grande crise da
psicologia, também propõe a superação do idealismo contemplativo para uma
ciência de características biossociais pautadas no materialismo: "Toda a
ciência surge das demandas práticas e, em última instância, também se orienta
para a prática." (Vigotski, 2003, p. 43).
REFERÊNCIAS
VIGOTSKI, L.S. Psicologia Pedagógica. Porto Alegre: Artmed,
2003.
Palavras-chave: Educação. Teoria Histórico Cultural. Vigotski.
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