terça-feira, 29 de setembro de 2020

As Escolas na Pandemia: fechar para salvar



 (Escrito por Renato Coelho)

Conceitualmente escola é ambiente natural de aglomerações, seja dentro das salas de aula, no recreio, nas quadras, na sala de professores, na cantina, nos corredores, no pátio, nos laboratórios, nos banheiros, no portão e na entrada e na saída. Fisicamente, a própria arquitetura das escolas é projetada para satisfazer espaços para as aglomerações. Além de aglomerações, as escolas tradicionalmente são concebidas para funcionarem como locais de intensos e contínuos contatos, sejam nas brincadeiras no horário do recreio, nas aulas de educação física, nas conversas dentro e fora das salas de aula. Existem múltiplas relações de interatividade no ambiente escolar, as interações entre os próprios alunos, as relações entre alunos e professores, professores e funcionários, funcionários e alunos, funcionários e funcionários, professores e professores. Além de todas essas interações pode-se acrescentar também a interação de todos os sujeitos citados com os pais ou familiares dos alunos. Sem esse universo infinito de interatividade humana não existiria a escola. Escola não pode ser vista apenas como depósito de crianças ou lugar de preparação para o mercado de trabalho. A escola é muito mais do que um espaço de aprendizagem de conteúdos e saberes, é um universo de sociabilidade e humanização. É na escola que as crianças aprendem muito mais do que gramática ou álgebra, geografia ou biologia, é onde as crianças aprendem a conviver em sociedade, descobrem o mundo, amadurecem e interagem com as diferenças. A pandemia do novo coronavirus obrigou o fechamento de todas as escolas no Brasil a fim de se evitar a proliferação e o aumento de contágios pelo vírus Sars-Cov-2. Porém, o que mais parece fazer falta não são os meros conteúdos, as aulas ou as disciplinas curriculares, mas sobretudo essa gama de interações e descobertas que são construídas e apropriadas no interior do espaço escolar. Na escola as crianças descobrem também as várias formas de preconceitos, o racismo, o machismo, a burocracia, a disciplina, o tempo do relógio, o bullying, a meritocracia, as paixões, as reprovações e as variadas formas de poder e de violência institucional. Na escola não existe a liberdade e o descontrole das ruas, nela tudo é controlado e cronometrado, assim como nas fábricas. As crianças aprendem na escola e fora da escola. Porém, na escola existe um saber sistematizado e científico, que é transmitido como legado e herança das gerações e tradições passadas. A escola é um universo complexo e singular. Os relacionamentos nascem, multiplicam e também são ressignificados nas interações escolares, mesmo num sistema educacional marcado pela burocratização, pela hierarquia institucional e violência simbólica, que são as marcas distintivas das escolas na modernidade. 

O fechamento das escolas em todo o Brasil, a partir de março, foi uma decisão necessária e acertada dentro do atual momento de pandemia do novo coronavirus. O governo do Distrito Federal foi o primeiro a decretar o fechamento de todas as  creches, escolas e universidades das redes públicas e privadas no dia 11 de março de 2020 (contraditoriamente o governador Ibaneis Rocha do DF no dia 29 de junho promove a reabertura sem restrições e diz que vai passar a tratar a Covid-19 apenas como uma gripe). Porém, não podemos deixar de destacar que o atual contexto de pandemia está sendo um momento turbulento e traumático para alunos, professores e também para as famílias dos estudantes em geral. Temos observado durante a pandemia que as escolas foram as primeiras instituições a serem fechadas quando do início das chamadas transmissões comunitárias no país, e com certeza deverão ser as últimas a retornarem com as atividades normais. Quando se fala em escola, se fala em intensas aglomerações. As aglomerações e os contatos nas escolas não envolvem apenas o espaço geográfico onde se situam as escolas. A logística de levar o filho para a escola envolve deslocamentos urbanos na forma de transportes públicos (ônibus, trens, bicicletas, carros ou a pé). O início do ano letivo nas escolas mobiliza centenas de milhares de pessoas relacionadas direta ou indiretamente ao pleno funcionamento das escolas. Existe uma correlação direta entre a dinâmica escolar e o aumento do fluxo nas vias urbanas como avenidas, ruas, rodovias e calçadas. Basta lembrarmos do período de férias escolares o quanto o trânsito fica menos caótico e os ônibus e terminais mais vazios do que em períodos normais de aulas escolares. A abertura das escolas implica no aumento da mobilidade urbana e consequentemente de maiores contatos e aglomerações em todas as áreas urbanas do país.

Escola de educação infantil reabre na Europa durante a pandemia


Segundo estudos epidemiológicos, a curva de crescimento exponencial de contágios e mortes no Brasil estaria mais acentuada e acelerada caso não houvesse o fechamento das escolas ainda em março de 2020. A grande discussão atual é justamente sobre o tempo para se reabrirem as escolas e poder assim dar continuidade ao ano letivo. Mas a grande e mais importante discussão não deveria ser essa sobre o retorno presencial das aulas escolares, mas sim sobre as formas urgentes e eficazes de controle da pandemia através de testagem em massa, isolamento, rastreamento e tratamento dos casos positivados da covid-19. Os números da pandemia demonstram que ainda não é a hora de abrirmos escolas públicas no Brasil. E não é à toa que atualmente esse debate toma lugar de destaque principalmente na mídia e nas redes sociais. Um forte fator de pressão que pesa sobre a retomada das atividades escolares é com relação a já iniciada reabertura precoce das atividades econômicas e do comércio em todo o país, que  por sua vez acaba provocando a necessidade das mães trabalharem, e sendo assim, não tem onde deixarem seus filhos durante o período laboral, já que numa sociedade patriarcal e machista como a brasileira, cabe sempre à mulher o papel de cuidadora dos filhos e de todas as atividades domésticas. Aqui surge a pressão oriunda dos grandes grupos econômicos e da grande mídia em geral para a reabertura das escolas, sob um olhar de escola como sendo um mero lugar de depósito de crianças e de preparação para o mercado de trabalho. Porém, a reabertura de escolas deve seguir rigorosos critérios científicos de segurança sanitária e que por sua vez envolvem vários quesitos e protocolos especiais. 

Em primeiro lugar, para se abrirem as escolas na atual conjuntura brasileira, a pandemia deve estar controlada nos estados e municípios onde estas se localizam, ou seja, as autoridades locais necessitam saber com precisão onde se encontra o vírus, e isso implica na realização de testagem em massa de toda a população, isolamento dos casos positivos e o rastreamento de todos os contatos para se ter certeza da quebra da cadeia de contágios do vírus naquelas regiões. As escolas não são ilhas, se o vírus está fora de controle no país, obviamente também estará descontrolado dentro das escolas. Ter o controle da pandemia significa saber onde está o vírus, quais são os cluster e onde se localizam os principais surtos de contágios locais. O chamado índice de transmissão do vírus deve estar abaixo de 1 (Ro < 1), e isso significa que os contágios estão decrescendo ao longo do tempo e que a pandemia não está fora de controle. Não basta criar critérios rigorosos e protocolos sanitários de segurança apenas dentro das escolas como uso de máscaras, álcool em gel, tapetes sanitizantes ou distanciamento social, é necessário estudar o comportamento da pandemia nos bairros, cidades e no país onde se situa a escola a fim de proteger a vida dos alunos, professores, funcionários e de seus familiares. Avaliando a dinâmica da pandemia no Brasil atual, constatamos a falta de políticas públicas coordenadas no combate ao novo coronavírus, a baixa testagem da população, a precarização e sucateamento das escolas, a falta de repasses de recursos para aquisição e instalação de equipamentos de higiene nas escolas, e ainda o planejamento inadequado, o despreparo e a burocratização excessiva das secretarias de educação frente à pandemia do vírus Sars-Cov-2, formam os ingredientes necessários para a manutenção e continuidade do fechamento total das escolas.

Sala de aula com crianças na Europa durante a pandemia


Pesquisas demonstram que grande parte dos professores das escolas públicas são considerados pertencentes ao chamado grupo de risco, também existe um percentual importante de alunos nas escolas públicas com comorbidades e que os tornam mais vulneráveis à covid-19. Além disso, deve-se destacar que culturalmente no Brasil existe uma grande parcela de crianças em idade escolar que vive na mesma casa com familiares idosos ou do grupo de risco (principalmente com avós), o que poderia transformar essas crianças escolares em potenciais transmissoras do vírus Sars-Cov-2 para os seus próprios familiares. Sendo assim, no caso do Brasil não é recomendável ou aconselhável, com base na ciência, a reabertura de escolas públicas ainda em 2020 para realização de aulas presenciais, pois corre-se um grande risco de se criar a chamada segunda onda de contágios, onde milhões de pessoas que se mantiveram isoladas até aqui, e que por isso permanecem sem imunidade, passariam a entrar em contato direto com o vírus, ocasionando uma nova exponencial de contágios e óbitos em todo o país de forma avassaladora.

Apesar de crianças e adolescentes não serem considerados grupos vulneráveis ou de risco, no Brasil, segundo dados do próprio Ministério da Saúde (www.covid.saude.gov.br) já foram confirmadas até maio de 2020, mais de 130 mortes entre crianças e adolescentes, colocando o país em primeiro lugar no ranking de mortes na faixa etária de 0 a 19 anos por causa da covid-19. Além das mortes de crianças, foi constatado até o mês de agosto de 2020 a chamada Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P) em mais de 197 crianças em todo o país. A SIM-P é uma doença inflamatória relacionada à Covid-19 em crianças, e que pode provocar semanas após a infecção pelo vírus, manchas e irritações na pele, febre alta, alterações cardiovasculares, renais, respiratórias, hematológicas e vários outros sintomas também potencialmente graves.

Atividades ao ar livre em escola europeia com crianças durante a pandemia


Tivemos no mundo várias experiências fracassadas de países que tomaram a decisão de abrirem as escolas durante a pandemia, como a França, Coréia do Sul, entre outros, mas tiveram que retroceder e fechar vários estabelecimentos escolares por causa de surtos de contágios pelo novo coronavirus entre alunos, professores e funcionários das escolas. O caso mais  emblemático de fracasso total de abertura das escolas em meio à pandemia é o de Israel. No início do pandemia Israel era tido como modelo no combate e controle do novo coronavirus, com baixa transmissão, isolamento social e testagem em massa da população. O governo de Israel em meados de maio resolve então flexibilizar de forma precoce e aligeirada o comércio e ao mesmo tempo promoveu a reabertura das escolas judaicas, desconsiderando que a taxa de transmissão no país ainda estava superior a 1 ( Ro>1 ) e que o verão na palestina seria muito quente a ponto de obrigarem tanto alunos quanto professores a fecharem as salas de aula  para o acionamento do ar-condicionado. Tudo isso foi o suficiente para o surgimento de vários surtos nas escolas e nas cidades israelenses, e contribuiu para o aumento descontrolado do vírus em proporções catastróficas como demonstram os números da pandemia hoje em Israel.

Surto de Sars-Cov-2 em escolas de Israel


Casos semelhantes ao de Israel também ocorreram em países como a França, onde o governo mudou de postura com relação à reabertura das escolas no primeiro semestre de 2020.

No Brasil temos também o caso emblemático de abertura precoce de escolas públicas  na cidade de Manaus, capital do Amazonas que experimentou taxas elevadíssimas de contágios e de mortes, chegando a atingir a chamada imunidade coletiva, que provocou a desaceleração natural da pandemia de forma catastrófica e desumana, com milhares de mortes, colapso de hospitais e de cemitérios. Manaus sofreu as mesmas consequências da pandemia que atingiu o a região norte industrializada da Itália, que também demorou muito a fechar as atividades de suas fábricas. O fechamento tardio das atividades do pólo industrial de Manaus, onde fica instalada a chamada Zona Franca de Manaus, foi um dos principais potencializadores do cresciento veloz da pandemia na cidade de Manaus e no estado do Amazonas.

No dia 10 de agosto foram reiniciadas as aulas presenciais na cidade de Manaus, localizada na Região Norte do Brasil, a capital que foi a mais atingida pela pandemia no Brasil, com números exagerados de mortos pela escassez de recursos médicos e pela falta de atendimento hospitalar. A abertura das 123 escolas na capital do Amazonas com cerca de 110 mil estudantes, se deu sem o diálogo ou consulta aos professores, alunos e pais de alunos. Na semana que antecedeu a abertura das escolas houveram protestos, ameaças de greves e manifestações de professores que eram contrários à reabertura das escolas em agosto. Muitos preferiam manter as aulas no sistema remoto, porém a Secretaria de Educação Estadual adotou o sistema híbrido com aulas remotas e presenciais, de forma escalonada com 50% das turmas separadas em cada dia. Mesmo adotando medidas de segurança e protocolos sanitários como disponibilidade de álcool gel, máscaras, tapetes sanitizantes, pias com água e sabão e recomendações para adoção do distanciamento social, segundo o sindicato dos professores que representam os docentes da rede pública de Manaus (ASPROM SINDICAL), vários professores e estudantes testaram positivo para a covid-19 em menos de um mês após o retorno das aulas e várias escolas foram fechadas por motivos de novos surtos de contágios pelo novo coronavirus entre alunos, professores e funcionários. E o mais agravante de tudo é que as estatísticas apontam que a partir de agosto os casos de contágios e de óbitos em Manaus e no Amazonas vem subindo novamente, indicando uma provável segunda onda e talvez da mesma forma como aconteceu em Israel, possa ter uma relação direta com a abertura prematura das escolas e o retorno dos alunos às aulas presenciais.

domingo, 27 de setembro de 2020

O Falso Normal: os esportes na pandemia



                            Funcionário realiza a sanitização do estádio de futebol no Brasil durante retorno do Campeonato Brasileiro na pandemia
 

(Escrito por Renato Coelho)

Sempre governos de diferentes países e em diversas épocas utilizaram os esportes como instrumento ideológico e de manipulação da população. E nestes tempos tenebrosos de pandemia não tem sido diferente. As velhas e demagógicas políticas de controle estão sendo constantemente utilizadas por governos, instituições e também pela grande mídia no sentido de forçar as pessoas a acreditarem que mesmo em um contexto de pandemia, com as curvas ascendentes de mortes e de contágios pelo novo coronavirus no Brasil, que a vida pode simplesmente seguir nos antigos padrões da normalidade social, com viagens, passeios em shoppings centers, finais de semana na praia, matinês no cinema, barzinhos com os amigos, e ainda que à noite podemos em casa torcer pelo time do coração nos campeonatos nacionais transmitidos pela TV. Esse bombardeio constante de propaganda da falsa normalidade atinge a todos e colabora com a necropolítica do Estado brasileiro em transformar a curva exponencial da pandemia no Brasil na mais alta e longa do mundo, sob um platô com uma média móvel de 900 a 1000 mortes diárias. Os números e a matemática ratificam que a vida não segue nada de normal.

O esporte a partir do século XX se transforma em espetáculo midiático e em megaevento de entretenimento de bilhões de espectadores em todo o mundo. O esporte mercadoria se transforma em produto de consumo e é ofertado não mais como exercício físico, promoção de bem estar ou prática de lazer, mas é transformado  tão somente em objeto de contemplação e de fethiche. O sujeito que antes praticava o esporte e também o próprio esporte se transformam em objetos reificados pelo capital. O outrora ativo praticante e desportista do dia a dia  ou aquele torcedor apaixonado pelo seu time e frequentador dos estádios desaparecem no mundo do esporte espetáculo moderno e passam a dar lugar ao consumidor passivo do entretenimento esportes, transformado num mero sujeito inerte e que apenas contempla virtualmente o esporte espetáculo globalizado, que se transformou apenas em uma imagem a ser vendida e consumida. Nessa metamorfose para se enquadrar no processo de fetichização capitalista, o esporte não apenas se transforma em mais uma mercadoria, mas também perde seus significados, seus símbolos, regras e tradições. Nesse processo de mercadorização e de aniquilamento dos sentidos dos esportes, ocorre o empobrecimento e a perda dos seus elementos constitutivos e essenciais que o ligam a estética, a arte, ao popular e à história humana.

Mas o esporte não é hoje uma mercadoria qualquer, mas sim uma mercadoria singular e que movimenta uma cifra de bilhões de dólares no mundo. E além de produzir uma escala astronômica de lucros aos seus patrocinadores, os esportes possuem também um capital político e ideológico incomparáveis. Um exemplo marcante dos esportes como instrumento ideológico foi demonstrado durante o período da chamada Guerra Fria, quando da polarização do mundo entre a antiga União Soviética (ex-URSS) e os EUA, que dividiu o planeta entre países capitalistas  apoiados e liderados pelos EUA e os países do bloco comunista, ligado à antiga União Soviética. Durante este período as olímpiadas se transformaram em palco de disputas hegemônicas entre atletas do mundo capitalista versus atletas do mundo comunista. Nestas disputas, no entanto, o “fair play” nunca existiu, pois eram constantes e comuns os escândalos com doping envolvendo atletas de ambos os lados e que utilizavam esteróides anabolizantes e outros fármacos para alcançarem o pódio e as cobiçadas medalhas olímpicas.

Nos países da América Latina não foi diferente o uso dos esportes por governos e regimes ditatoriais, sempre houveram ações estatais que transformaram os esportes em bandeira de propaganda de representantes políticos ou de partidos. Na Argentina de Perón ao Brasil de Vargas, sempre se soube do grande poder, do fascínio, do êxtase e da admiração provocados pelos esportes, em especial do futebol, sobre a maior parte da população latino americana.

Durante o período das ditaduras militares na América do Sul, houveram casos emblemáticos e históricos onde o Estado se utilizou do esporte para promoção e propaganda de seus ideais e valores autoritários e repressivos, sob o falso manto do triunfalismo, da eficiência, do mérito e da sobrepujança, que são as características principais do esporte. E mais ainda, aqueles que conseguiam alcançar o mérito de serem os mais rápidos, mais velozes e que iam mais alto ou mais longe nos esportes, eram então convocados a se transformarem  em "garotos propaganda" da máquina  de publicidade  oficial do Estado.

A ditadura militar comandada por Jorge Videla na Argentina utilizou a Copa do Mundo de 1978 como propaganda do regime ditatorial para o mundo, tentando esconder as mazelas sociais do país, a pobreza e a violência estatal contra a os opositores ao regime. A Argentina que era sede da Copa do Mundo FIFA de Futebol em 1978 aumenta a violência e a repressão aos opositores no país durante o período da Copa. Enquanto a bola rolava nos gramados argentinos, milhares de pessoas passavam fome nos subúrbios das grandes cidades devido à miséria no país ou eram presas, torturadas e mortas pela polícia argentina.  Mas a propaganda de Videla tentava passar ao mundo a visão de uma outra Argentina, bem diferente daquela que se via nas ruas de Buenos Aires ou nos porões da polícia por todo o país. A propaganda estatal era a Argentina  como sendo o país do futebol  e do triunfo da seleção de Passarela, campeã do mundo em 1978. Mas, para se chegar à final da copa e ao título, o governo Argentino promoveu várias intervenções junto à Fifa e também na escancarada manipulação de jogos que beneficiaram o time anfitrião. Um jogo bastante emblemático foi entre Argentina e Peru durante as semi-finais, onde a seleção Argentina necessitava vencer a equipe adversária peruana com um placar de 4 gols de diferença para avançar à próxima fase, e assim também eliminar a seleção do Brasil daquela Copa. Com visita do general Videla ao vestiário da seleção peruana antes e após o jogo contra a Argentina, o placar final de 6 X 0 a favor da Argentina, fez a mesma avançar à final e disputar o título contra a Holanda.

No Chile, da mesma forma o ditador Augusto Pinochet, passa a promover intervenções e apoiar o Colo Colo, o time mais  famoso e popular da época e que formava a base da seleção chilena. Com o objetivo também de tentar desviar a atenção da população chilena e do mundo das barbáries, atrocidades e genocídios promovidos pela ditadura chilena aos seus opositores, o governo do ditador  Pinochet se utiliza do futebol como instrumento de controle e para mascarar a realidade. O Estádio Nacional do Chile em Santiago se tornou na época em um dos maiores símbolos da cruel ditadura chilena. Este famoso e importante estádio de futebol serviu de local de prisão e tortura para milhares de simpatizantes e apoiadores do governo deposto de Salvador Allende. Milhares de chilenos foram assassinados pela ditadura de Pinochet  dentro do Estádio Nacional do Chile. Um jogo que não aconteceu, mas que entrou para a história do futebol mundial foi nas eliminatórias para a copa do mundo de 1974 na Alemanha, onde a seleção chilena deveria enfrentar a seleção da antiga União Soviética no próprio Estádio Nacional em Santiago, mas o time russo se recusou a entrar em campo em protesto contra a ditadura de Pinochet e então a seleção do Chile entra no estádio sem o time adversário e vence o jogo por W.O, se classificando com o Estádio lotado com mais de 20 mil torcedores, mas que não assistiram a jogo nenhum.

No Brasil podemos citar também vários momentos sobre a utilização dos eventos  esportivos como instrumento ideológico e de manipulação, que vão desde  os governos de Getúlio Vargas, passando pelos militares pós 1964 e indo até os governos atuais.

Um dos episódios mais emblemáticos e marcantes da história do futebol no Brasil, e sobre a  ideologização do maior esporte nacional, ocorreu em 1970 na disputa da Copa do Mundo do México, onde a seleção comandada por Pelé & Cia, considerada a maior seleção de futebol de todos os tempos, se transformou na maior e mais poderosa bandeira de propaganda política da ditadura militar brasileira. Enquanto milhares de brasileiros, que se opunham à ditadura, eram torturados e mortos nos porões das delegacias policiais, o governo exaltava e patrocinava a chamada seleção canarinho que se consagrou tricampeã no México em 1970. A propaganda estatal sobre a seleção de Pelé não somente tentava passar uma boa imagem do Brasil no exterior, assim como também conseguia desviar o foco da população brasileira das questões importantes e ligadas à fome, à miséria , às injustiças sociais e sobretudo com relação à violência e repressão institucionalizada do regime contra os próprios brasileiros. O futebol também ajudou a vender mais tarde a propaganda do “milagre brasileiro” referente ao crescimento artificial da economia e promoveu dentro e fora do país a falsa imagem criada pelos militares do regime caracterizado pelo slogan “Brasil Potência” e “Brasil, País do futuro”.

Nos governos do PT, de Lula e Dilma, (2002-2016) mais uma vez se gastou muita energia e volumosas quantias em dinheiro para transformar o país na sede dos dois  maiores megaeventos  esportivos do planeta, a Copa do Mundo Fifa 2014 e Olimpíadas Rio 2016. O grande êxtase e o entusiasmo em sediar os megaeventos mais importantes do esporte moderno, contribuíram também para desviar o foco e a atenção da população brasileira da sua realidade, camuflando os problemas sociais e servindo de capital politico para o governo. Porém, os gastos astronômicos com a construção das chamadas Arenas de futebol, que ultrapassaram os 30 bilhões de reais (somente o estádio Mané Garrincha em Brasília custou cerca de 1,8 bilhão, e foi considerado na época o estádio mais caro do planeta). Os gastos com as Olímpiadas do Rio em 2016 ultrapassaram os gastos com a copa do mundo de 2014, chegando a cifra de 40 bilhões de reais. Os altos gastos com os megaeventos, as constantes denúncias de corrupções envolvendo os megaeventos esportivos e em contrapartida  a falta de investimentos em infra-estruturas ligadas à saúde, educação, saneamento e geração de empregos, e entre outros fatores importantes ,ajudaram a derrubar a popularidade do governo liderado pelo partido dos trabalhadores, culminando com o impeachment da presidenta Dilma Roussef em 2016.

Hoje, durante a pandemia do novo coronavirus e o governo de Jair Bolsonaro, também podemos observar a velha estratégia de se utilizar o esporte como propaganda na criação de uma falsa normalidade, com as mesmas estratégias e mecanismos adotados por governos anteriores, desde Vargas, passando pelos governos da ditadura militar pós 1964 e pelos governos do PT a partir da década de 2000. Os novos tempos e as velhas políticas em ação.

A partir de agosto de 2020, ainda quando se observava grande aumento nas curvas de contágios e de mortes pelo novo coronavirus em todo o país, houve o reinício do campeonato brasileiro de futebol e também dos campeonatos estaduais, resultado da pressão dos grandes times de futebol e pela própria CBF, e estes por sua vez reproduziam os discursos e as pressões do próprio presidente da República Jair Bolsonaro a favor da reabertura precoce da economia e da volta à "normalidade". Mesmo sem público nos estádios, foram criados vários protocolos sanitários para evitar o contágio entre atletas e pela comissão técnica. Mas o que assistimos foram vários episódios de surtos da covid-19 entre vários times do Brasil, inclusive do Goiás E.C e também do Atlético Goianiense, ambos times pertencentes à capital goiana. E no último dia 22 de setembro o time com a maior torcida do Brasil, o famoso Flamengo, testou 27 pessoas contaminadas, entre atletas, comissão técnica e cartolas, em viagem à cidade de Guayaquil no Equador pela disputa da copa Libertadores da América. O time que mais pressionou as autoridades para o reinício dos jogos durante a pandemia, tem praticamente quase todo o time e o próprio técnico contaminados pelo vírus Sars-Cov-2, provando que o reinício do futebol foi uma decisão precoce e insensata, e que não existe protocolo seguro quando a fase de transmissão do vírus é acelerada e ascendente.

Como se não bastasse, existe hoje no Brasil uma forte pressão de clubes sobre a CBF no intuito de liberar a participação de torcedores nos estádios durante a pandemia. Esse movimento também é encabeçado pelo time do Flamengo, cuja diretoria apoia o presidente da República, exigindo a abertura dos portões e das bilheterias aos torcedores. O prefeito do Rio de Janeiro, de olho nas eleições municipais de novembro próximo cedeu à pressão e aprovou a reabertura do Maracanã aos torcedores. Mas com a revolta de outros dirigentes de clubes importantes que não concordam com a reabertura apenas do Maracanã, a prefeitura carioca e o Flamengo voltaram atrás, aos menos por enquanto.

O que está de fato por detrás da volta do futebol e também das torcidas  nos estádios em pleno aumento de casos na pandemia? Hoje o país contabiliza cerca de 140 mil mortos pela covid-19 e várias cidades, como Goiânia, experimentam atualmente o pico de casos e de mortes na pandemia. Essa chamada necropolítica que promove o genocídio de brasileiros em todos os estados da federação, representa a tentativa desesperada e pragmática dos governos do país em criar uma falsa normalidade (alguns denominam de “novo normal”), onde o esporte e principalmente o futebol pode ser capaz de criar no imaginário das pessoas a falsa sensação de que a vida voltou a ser como antes, que podemos sair de casa e trabalhar como se a pandemia já estivesse terminado.  Mas é o contrário, a pandemia está em sua fase mais letal e veloz, ceifando milhares de vidas a cada instante. Uma tentativa desesperada em querer recuperar as perdas da economia pela pandemia em um país onde o governo usa o discurso negacionista e se isenta na criação de políticas públicas de mitigação dos contágios, faz então multiplicarem as tentativas e as propagandas de um falso normal, onde as pessoas possam voltar logo a consumir e se divertirem mesmo com um vírus desconhecido, letal e sem controle nas ruas. E o esporte se torna mais uma vez este instrumento de criação da normalidade impossível, tal qual nas ditaduras da América Latina ou como os já citados megaeventos dos governos do PT no Brasil.

A grande verdade, todos já sabem, para se controlar uma pandemia em um país pobre como o Brasil requer grandes investimentos que garantam a manutenção financeira das famílias de todos os trabalhadores e dos mais pobres e vulneráveis, também a criação de políticas públicas coordenadas na área da saúde capazes de promover a testagem em massa, o rastreamento em massa, o isolamento em massa e o tratamento de todos os contaminados do país, sejam os casos mais graves ou assintomáticos. Porém, nenhuma destas ações estão sendo colocadas em práticas no Brasil, daí a escolha pelos governantes pelo caminho mais fácil em colocar o trabalhador dentro dos estádios ou em frente da TV para assistir o seu time do coração em plena pandemia. Neste atalho que estamos trilhando e que se utiliza dos esportes como anestésico para uma população em pânico e à beira de uma revolta por causa dos prejuízos e do aumento da miséria provocado pela pandemia poderá levar o país ao abismo de uma pandemia que deverá durar anos e levar a economia aos frangalhos e a saúde pública ao colapso. Essa é a velha estratégia dos governos e do Estado para se criar o falso normal, porém o desemprego, a fome e a morte não são falsas, mas são muito reais.

 

 


terça-feira, 22 de setembro de 2020

O Desafio com as Crianças na Pandemia: os jogos e as brincadeiras

 


(Escrito por Renato Coelho)

A pandemia do novo coronavirus vem provocando, além de um número muito grande de contágios e de óbitos, também uma mudança radical no comportamento e no cotidiano de milhões de pessoas em todo o mundo. Com as crianças não tem sido diferente. Muitas crianças permanecem em isolamento nos seus lares, e sem as aulas presenciais nas escolas. As escolas para as crianças não são apenas locais de apropriação de novos conteúdos e saberes, mas acima de tudo, um espaço de convívio social e de intensos relacionamentos.

Por questões de segurança sanitária, as escolas em grande parte do país, ainda permanecem fechadas desde o mês de março de 2020, a fim de se evitar o aumento de casos de covid-19, pois as escolas são consideradas ambientes super transmissores do novo coronavirus, em virtude das aglomerações e dos contínuos contatos dentro do ambiente escolar. A dinâmica de funcionamento de uma escola é muito diferente e mais complexa do que a de um shopping center, de um supermercado ou de um restaurante. Numa escola, diferentemente daqueles espaços citados, não há como controlar o fluxo de pessoas e as aglomerações são constantes e inevitáveis. Escola é por natureza lugar de contatos, interações e de aglomerações.

É sabido por todos, o grande fracasso do chamado Ensino à Distância (EaD) para as crianças no Brasil, principalmente em se falando de escolas públicas, que não oferecem nenhum apoio por parte do Estado que viesse a facilitar o acesso à internet e ao computador aos alunos matriculados. As experiências com o EaD tem demonstrado a falácia e a grande mentira em que se tornou o ensino remoto no Brasil. A precariedade das escolas e das famílias mais pobres é tamanha que as aulas se transformaram apenas em envio de mensagens e vídeos por whatsapp ou por outras ferramentas virtuais de mensagens, onde se observou que muitas famílias de alunos, se quer tinham condições de comprar crédito para os celulares a fim de que os filhos acompanhassem as aulas, e destacaram-se muitos lares em que apenas um único celular era compartilhado por vários integrantes da família ao mesmo tempo.

As aulas remotas jamais podem substituir ou se igualar em qualidade e interatividade relacional ao ambiente presencial das aulas na escola. E é exatamente esse tempo e espaço de convívio que as crianças, não somente do Brasil, mas do mundo inteiro, vem sentindo muita falta. Essa ausência do convívio com os colegas de escola, também a ausência das conversas, das brincadeiras e dos jogos realizados no ambiente escolar podem dificultar o desenvolvimento emocional, cognitivo e motor das crianças, desde que a família, os governos, as escolas ou os próprios pais não tenham condições ou oportunidades de ofertar e de criar meios substitutivos e adaptados para este novo contexto da infância na pandemia.

Quais seriam as alternativas para as crianças? As escolas são ambientes importantes e fundamentais para as crianças que vivem em sociedade se desenvolverem plenamente. Porém, as escolas também são ambientes onde existem a violência, o preconceito, o racismo, o individualismo, a concorrência, o machismo e todas as mazelas sociais, pois a escola é também reprodutora de todos os valores sociais e não está nunca circunscrita ou isolada do mundo, ela pode somente reproduzir ou refletir os valores de uma sociedade, assim como também pode ressignificar ou até mesmo servir de contraposição às mensagens do mundo. Entretanto, não cabe à escola resolver os problemas sociais, pois ela também faz parte dos problemas, e nós já sabemos que em uma sociedade de classes, as escolas tem como objetivo primordial a formação de mão de obra barata para o mercado de trabalho. Mas, contraditoriamente na pandemia do novo coronavirus, muitos estão descobrindo a verdadeira importância da escola como singular espaço de convívio e de aprendizagens na infância. Seja pela falta de onde colocar os filhos no tempo de trabalho, seja pela perda de aprendizagens significativas e sistematizadas que a escola é capaz de produzir, seja pela carência de relacionamentos das crianças com os antigos colegas de classe ou sejam por problemas emocionais gerados nas crianças pelo isolamento social e o consequente fechamento das escolas. Todas estas questões relacionadas às crianças no contexto da pandemia do novo coronavirus são relevantes e devem tomar a pauta das discussões e debates neste momento caótico da pandemia no Brasil.  

Muitas mães estão sobrecarregadas e à beira da loucura ao serem obrigadas a dividir o tempo com os trabalhos domésticos, o cuidar das crianças e o trabalho profissional, já que vivemos numa sociedade patriarcal e machista, onde infelizmente sempre cabem às mulheres o cuidar das crianças e todas as tarefas domésticas da família. E o novo coronavirus, além de descortinar essa violência de gênero, também veio potencializar a exploração sobre as mulheres em geral, e não é à toa, que na maioria das cidades do Brasil, as mulheres são mais contagiadas pelo vírus Sars-Cov-2 do que os homens. O vírus não prefere um sexo a outro, mas a pandemia na verdade revela tão somente as desigualdades de gênero já existentes e enraizadas há séculos na sociedade brasileira.

Para uma minoria de famílias privilegiadas, sobra a alternativa de compensar a ausência da escola com atividades lúdicas para as crianças com utilização de brinquedos, jogos, brincadeiras tradicionais e ainda jogos de tabuleiros. No atual contexto da pandemia, observamos que acaba mesmo sendo um luxo para os pais disporem tempo para os filhos, ou  terem disponibilidade para brincarem com seus filhos,  já que muitos pais estão experimentando no contexto atual a intensificação e a precarização do trabalho, nas formas de perdas na renda familiar, aumento da inflação, abalos emocionais e adoecimentos. Mas talvez tentar exercer este grande  esforço em disponibilizar tempo e dialogar om as crianças em plena pandemia, será uma das poucas heranças positivas deste momento de devastação e de barbárie que a pandemia nos revela.

Os jogos e brincadeiras são capazes de promover nas crianças o desenvolvimento da criatividade e também das suas funções psicológicas superiores como a linguagem, o raciocínio, a memória, o pensamento simbólico e também  as suas capacidades motoras.

Existe uma frase muito utilizada por professores e coordenadores de escolas que diz assim: “Escola não é lugar de brincadeiras”, porém onde não há brincadeira, não há o desenvolvimento infantil de crianças. A escola, a casa, a sala, o quintal, a rua, todos estes são lugares do brincar. A rua, o lugar mais importante do brincar, ainda está ocupado pelo vírus e oferece riscos às crianças no momento atual em Goiás. Porém, uma sala pode virar uma nave espacial na brincadeira, o quintal se transforma num planeta desconhecido no imaginário infantil quando se brinca. E tudo isso se traduz em desenvolvimento infantil. A criança não aprende somente na escola, ela também aprende em casa e brincando. A brincadeira é capaz de facilitar a aprendizagem da linguagem, do conhecimento lógico matemático e faz com que as crianças se apropriem no processo do brincar dos códigos sociais e da cultura humana. A criança que brinca está se relacionando com sigo mesma, com as outras crianças e também com todas as gerações humanas anteriores, pois o brincar é uma construção social. No brincar a criança se faz humano.

Por isso, mesmo durante o isolamento social,  é importante sempre que possível planejar o tempo das crianças em casa com atividades lúdicas compostas por jogos e brincadeiras. E para se respeitar as regras de isolamento social e evitar contágios com outras famílias de crianças, os próprios pais podem dedicar tempo brincando com seus filhos. Talvez uma mãe ou pai não tenha muito conhecimento sobre alfabetização de crianças ou de álgebra para poder ajudar os filhos nas atividades escolares em casa, mas podem sim brincar com as crianças de faz de conta, com jogos populares e brincadeiras tradicionais. A brincadeira é uma linguagem universal e todos são capazes de aprender e de ensinar. Todos nós conhecemos alguma brincadeira ou jogos da nossa própria infância.

Portanto, brinquemos todos os dias com as crianças e com todas as crianças, mesmo que as escolas não reabram tão cedo.