REFERENCIAL



INTRODUÇÃO

Até por volta do século XII, a infância era desconhecida, não existia representação sobre essa fase da vida humana. Segundo Airès (1981), não havia lugar para a criança nesse mundo, eram apenas consideradas homens de tamanho reduzido. Até mesmo na arte, as crianças eram pintadas em formato de adultos, diferenciando destes apenas com relação ao tamanho. Já no século XVI, no auge do liberalismo, a visão sobre a criança começa a possuir um caráter singular, mas é somente no século XVIII que se começa a perceber de fato a caracterização da presença social da noção de infância, considerando a criança não mais um “adulto em miniatura”, mas nasce um desejo de fazer da criança um homem.  É com o surgimento da escola moderna que se articula um novo conceito com relação à infância, sujeitos que necessitam de cuidados especiais, e de uma pedagogia própria. Após a Revolução Industrial, com o surgimento e a consolidação da noção de infância, cria-se uma escola a fim de preparar as crianças para o mundo do trabalho. (GUIRALDELLI, 2000).
Vê-se assim que a noção de infância não é algo natural, mas uma construção profundamente histórica e cultural. (SOUZA, 2000, p.91).

(...) a infância, na forma como a presenciamos hoje, é uma construção dos últimos 200 anos da história. Antes disso, ia-se para a guerra, casava-se e trabalhava-se assim que tivesse condições físicas para tanto. (AYRÈS apud MELLO, 2007, p.84).


Entretanto, o que se observa atualmente é um “movimento de encurtamento da infância”, onde as crianças são submetidas cada vez mais cedo a práticas que as transformam precocemente em escolares. (MELLO, 2007, p. 86).

No entanto, essa compreensão não deve levar ao equívoco de pensar que é possível acelerar o desenvolvimento psíquico da criança transformando precocemente a criança pequena em escolar. Essa aceleração artificial do desenvolvimento da criança por meio do desaparecimento paulatino da infância, que no âmbito do discurso neoliberal pode parecer progressista, é, na essência, reacionária, e comprometedora desse desenvolvimento (MELLO, 2007, p.20).


Atualmente com o desenvolvimento do capitalismo, das práticas hegemônicas neoliberais, com a mundialização dos mercados nacionais, dos exageros da cultura de consumo e o surgimento das chamadas crises de identidade, a noção de infância sofre uma alteração bastante significativa. Agora ser criança é “ter um corpo que consome coisas de criança”. A nova visão de infância cria o “consumidor em miniatura”, a infância como período ou fase natural desaparece, é criado um simulacro da criança, articulado com a lógica do capital, a “criança-consumidor”.

No entanto, como alertava Marx, vivemos ainda na pré-história humana e constatamos facilmente que o direito à infância não foi ainda consolidado e não o será senão também pela luta contra a concentração de riqueza, saber e poder. (MELLO, 2007, p. 84).


Atualmente em nossa sociedade capitalista, marcada pelo individualismo, pela racionalidade e pelo fetichismo da mercadoria, os valores lúdicos, subjetivos e simbólicos, estão sendo extintos e quase que anulados no cotidiano das pessoas, com exceção do discurso midiático, que de forma abusiva, mas inteligente, promove cotidianamente a criação de novas e supérfluas necessidades de consumo sobre o indivíduo através do uso de signos, alicerçados na teoria do marketing empresarial. Nas escolas, os componentes curriculares não têm privilegiado estes itens fundamentais e importantes para a formação do ser humano. Vivemos numa sociedade cada vez menos lúdica, cada vez mais racional, tecnológica e violenta. Daí a importância em resgatar a ação lúdica do brincar, como elemento de destaque na esfera do simbólico e da constituição da subjetividade humana. (PADILHA, 2000, p.200).
Dentro deste atual contexto, nos propomos a construir um ensino que priorize e incentive a formação das representações simbólicas através da vivência em atividades lúdicas, sabendo que é tão somente através delas, que as crianças, citando Gorki (in LEONTIEV, 1988, p. 130): “compreenderão o mundo em que vivem e que serão chamadas a mudar”.

(...) a criança deixa de ser um objeto a ser conhecido, reconquistando seu lugar de sujeito e autora no mundo em que se encontra estabelecida. Sendo sujeito, a criança não pode permanecer sem voz, e é no diálogo com o outro que ela mostra a indissociabilidade entre a forma e o conteúdo da sua existência ativa no mundo. (SOUZA, 1994, p.24).


Para Vygotski (1998, p.133), o brinquedo não é o aspecto predominante da infância, mas é o fator mais importante do desenvolvimento da criança. A tensão em que a criança é colocada diante do desejo não realizável de entrar no mundo adulto e a sua não satisfação faz surgir então uma tendência para a sua satisfação imediata.

Para resolver essa tensão, a criança em idade pré-escolar envolve-se num mundo ilusório e imaginário onde os desejos não realizáveis podem ser realizados, e esse mundo é o que chamamos de brinquedo. (VYGOTSKY, 1998, p. 122)

A fim de se resolver tal contradição, ou seja, a discrepância entre a necessidade de agir e a impossibilidade da sua execução, surge através da criança a ação lúdica, os jogos e as brincadeiras. As motivações passam a estar no próprio processo em si, e não nos resultados, caracterizando uma atividade não produtiva, o não-trabalho. A ação lúdica passa a ser a principal atividade da vida da criança, pois ocorrerão aqui as mais importantes mudanças no desenvolvimento psíquico da criança (LEONTIEV, 1988, p.122).

Nessa atividade lúdica – não produtiva –, são exercidas e cultivadas funções essenciais em processo de desenvolvimento na criança como a memória, a imaginação, o pensamento, a linguagem oral, a atenção, a função simbólica da consciência. Ao se colocar no lugar do outro – em geral, adulto que representa no faz-de-conta –, a criança objetiva seu comportamento num nível mais elevado de exigência social. Com isso, exercita e aprende, pouco a pouco, a controlar sua vontade e conduta. (MELLO, 2007, p.97)


Em qualquer ação produtiva do nosso cotidiano, o significado e o sentido estão sempre interligados de uma dada forma, ou seja, cada atitude tem um objetivo ligado a um motivo, é o seu sentido, e cada operação por nós realizada possui um dado conteúdo, ou seja, o seu significado. Porém, no brincar da criança, essas relações não são as mesmas, ocorrendo uma ruptura entre sentido e significado. No imaginário infantil, um simples objeto passa a ser uma outra coisa, adquirindo um sentido especial, que passa a ser diferente de seu significado real. Esta ruptura surge na brincadeira infantil e permite a apropriação de novas e mais sofisticadas formas de relações sociais, passando ela mesma, a criança que brinca, a enxergar a si própria sujeito das relações humanas.  O brincar permite ainda a criação de novas zonas de desenvolvimento próximo, proporcionando alterações das estruturas cognitivas, não sendo apenas uma simples assimilação daquilo que a criança percebe da realidade. Dentro das brincadeiras a criança é capaz de ir muito além daquilo que viu ou sabe, imaginando e criando novas situações e relações, através de representações de papéis, imaginando situações ou estabelecendo novas regras. Dentro desta esfera do imaginário da criança, ao se criar uma zona de desenvolvimento próximo, abre-se possibilidades ao desenvolvimento que se segue, e é guiado por este processo criativo e inventivo do imaginário. Sendo assim, a ação lúdica permite a criança agir muito além daquilo que conhece ou sabe, não sendo apenas uma recordação simples do vivido, mas sim a transformação criadora das impressões para a formação de uma nova realidade que responde às exigências e inclinações da própria criança. (LIBÓRIO, 2000)
E é justamente dentro das brincadeiras, onde se promove a contradição ou discrepância entre ação e operação, dando um sentido especial às coisas, que se produz o desenvolvimento de suas funções simbólicas da consciência.  A criança desenvolve sua representação simbólica e passa a compreender a importância do signo.(COUTO, 2007).

O brincar não pode ser negligenciado a um segundo plano, dando lugar a aprendizagens artificiais para as quais as crianças ainda não estão preparadas e que, por meio de fazeres mecanizados e estéreis, impedem que elas se apropriem das capacidades psíquicas fundamentais para um pleno desenvolvimento cultural. (COUTO, 2007, p.25).


Vê-se assim a importância dos jogos e das brincadeiras no desenvolvimento da infância, sendo uma atividade fundamental e insubstituível no cotidiano infantil, capaz de provocar a própria humanização das crianças através da assimilação e apropriação dos códigos e condutas sociais através do próprio brincar.



  
  REFERENCIAL TEÓRICO
O enfoque histórico-cultural considera o desenvolvimento psicológico humano como sendo um processo complexo, cujas origens se encontram nas condições e organizações do contexto social e cultural, construídos e constituídos ao longo das vivências do indivíduo.

O desenvolvimento psicológico tem sua fonte no contexto social e cultural que rodeia o sujeito particular e individual ao longo de toda sua vida pessoal e se produz definitivamente no interior do sujeito, que se constitui em pessoa única e irrepetível (BEATÓN, 2005, p.114).


A análise histórico-cultural elaborada por Vygotski foi altamente influenciada pelas concepções do materialismo histórico dialético de Marx e Engels, de onde ele extraiu os conceitos sobre atividade, mediação semiótica e a idéia central de que o ser social determina a consciência social.

Vygotski considerava ainda a dupla dimensão do ser humano, sujeito e sujeitado, dando grande importância à participação do outro no processo de significação e constituição do sujeito, sem negar a efetiva participação do Eu, social e historicamente produzido. (ZANELLA e ANDRADA, 2002, p.127).


O contexto histórico dos escritos de Vygotski (início do séc. XX) era representado por uma realidade de revolução social, miséria, guerra civil e opressão. Este grande homem e pesquisador, mesmo acometido de tuberculose, passa a trabalhar até o fim de sua vida na organização de escola para crianças surdas, cegas, com problemas mentais e com transtornos de linguagem.

Vygotsky destaca-se como um dos principais criadores do sistema de escolas para crianças com necessidades educacionais especiais em toda a União Soviética e trabalha neste programa de educação até que morre. Ele é considerado um dos iniciadores deste programa educacional, social e humano desde os primeiros momentos e grande parte de suas idéias sobre o desenvolvimento psicológico e o papel da educação ele desenvolveu no trabalho com este tipo de aluno (BEATÓN, 2000, p. 42)


Muitos dos escritos de Vygotski foram proibidos em seu país, e vários de seus estudos só foram publicados cerca de 60 anos após sua morte. Sua vida é dedicada em grande parte ao estudo de crianças com necessidades educacionais especiais, e em todos eles estão incluídas suas propostas e leis gerais para o desenvolvimento psicológico humano: “As mesmas leis gerais que se cumprem para as crianças sem déficit, se cumprem para as crianças com déficit”. (BEATÓN, 2005, p. 91).
A partir de agora, tudo o que passa a construir Vygotski em suas teorias sobre o desenvolvimento cognitivo humano, passam a ser de ordem genérica, tendo validade para todos os seres humanos, sejam pessoas com necessidades especiais ou não. Na prática isso significa que toda criança é considerada educável, mesmo aquelas com as mais profundas necessidades especiais. Aqui Vygotski rejeita por completo a ideia, até então predominante em sua época, em que o desenvolvimento da criança com necessidades educacionais especiais obedecia a leis próprias e particulares. Sendo assim, Vygotski passa a discordar profundamente de uma educação baseada numa orientação normal/patológico, uma vez que ele mesmo, em seus trabalhos, passa a enfatizar as semelhanças e um “continuum” no desenvolvimento. (EVANS, 1995, p.71).



            15.1 A dialética entre o biológico, o social e o cultural em Vygotski  
Na época de Vygotski, prevaleciam nas ciências em geral, as ideias inatistas e biologicistas sobre a formação da cognição humana (Pavlov, Darwin, etc.). Este  reducionismo científico, que propunha uma relação causal entre o biológico e o psicológico, não era capaz de explicar os fenômenos mais complexos como, por exemplo, a linguagem ou a memória humana. Vigotski analisa as concepções psicológicas de sua época, e passa a duvidar e questionar sobre estudos que diziam ter as funções psicológicas superiores (o pensamento, a linguagem, a imaginação, o raciocínio lógico, etc.) uma origem essencialmente biológica. Ele não acreditava ainda que os processos biológicos apenas se misturavam de forma unilateral com os processos sociais e culturais, mas defendia a inter-relação e dinamicidade entre estas três esferas da realidade humana, dentro de um processo chamado de dialético. Acreditava ainda que tais processos eram constituídos em sistemas, e por isso não podiam ser decompostos ou analisados separadamente e de forma fragmentada.

Ambos os planos de desenvolvimento, o natural e o cultural, coincidem e se misturam um com o outro (....) como o desenvolvimento orgânico tem lugar em um meio cultural, se converte em um processo biológico condicionado historicamente (VYGOTSKY apud BEATÓN, 2005, p. 40)


Vygotski lutou durante toda a vida para mudar todo o paradigma de sua época, ao explicar que o psíquico humano não era apenas algo inerente ao desenvolvimento biológico, era na verdade uma realidade complexa e dinâmica entre o biológico, o social e o cultural.               
                                                        

Figura 01. A dinâmica das condições do desenvolvimento psicológico de Vygotsky


Vygotski tão pouco desprezava as bases biológicas das funções psicológicas superiores. É, segundo o autor, onde se dá o início de todo a construção do humano, entretanto, procurou sempre não dicotomizar as estruturas formativas do homem, mas sempre enxergá-las de forma inter-relacionada e sob a ótica dialética, conforme nos sugere a figura 01.


O desenvolvimento da conduta constitui por si mesmo um objeto importantíssimo do estudo psicológico, se não também porque a história do desenvolvimento das funções psíquicas superiores é impossível sem o estudo da pré-história das funções superiores, de suas raízes biológicas, de seus dotes orgânicos. (VYGOTSKY apud BEATÓN 2005, p.177).

             
Na época de Vygotski, assim como hoje, prevalecia nas ciências o caráter positivista sobre os estudos do comportamento humano. As influências do behaviorismo, baseadas nas leis de estímulo-resposta, explicavam as funções psicológicas superiores (a fala, a imaginação, etc.), através do reducionismo às funções psicológicas inferiores (reflexos condicionados, instintos, produtos neurofisiológicos, etc.).

A tendência em se limitar a psicologia infantil ao estudo do desenvolvimento embrionário das funções superiores indica que a própria psicologia das funções superiores se encontra em um estado embrionário (VYGOTSKY apud BEATÓN 2005, pg 177).


Vygotski foi ainda mais longe, acreditava ser possível o desenvolvimento das funções psicológicas superiores sem mudanças efetivas no biológico, tal ideia revoluciona toda a psicologia, mudando por completo os paradigmas anteriores e construindo uma nova maneira de olhar o ser humano, de forma integral e holística. Logo, as estruturas cerebrais não são mais vistas como independentes da riqueza, quantidade e qualidade das estimulações sensoriais que recebe o sujeito dentro do seu contexto, dentro de sua cultura. O homem passa a ser a partir de então um “ser biologicamente cultural ou culturalmente biológico”. 


Vigotski esclarece que o desenvolvimento é um processo dialético, marcado por etapas qualitativamente diferentes determinadas pela atividade mediada, justamente o que o promove. Via atividade, o homem (entendido enquanto sujeito genérico) é capaz de transformar sua própria história e a história da humanidade, posto que por seu intermédio transforma o contexto social em que se insere e ao mesmo tempo se transforma. (ZANELLA E ANDRADA, 2002, p.128)


Para Vygotski, o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores não é idêntico, nem tão pouco redutível aos fatores que explicam os processos psicológicos elementares, com os quais estão relacionados os processos de desenvolvimento natural. (BAQUERO, 1998, p.72). Os processos psicológicos superiores se firmam a partir da participação dos sujeitos em atividades sociais valendo-se de instrumentos de mediação.
O ensino deve servir então como elemento inerente aos processos de desenvolvimento da criança. E é durante tal desenvolvimento dessas relações organizadas que evoluem as funções psíquicas superiores da criança.

A educação, por sua vez pode ser definida como o desenvolvimento artificial da criança. A educação é o domínio engenhoso dos processos naturais de desenvolvimento. A educação não apenas influi sobre uns ou outros processos do desenvolvimento, como também reestrutura da maneira mais essencial, todas as funções da conduta. (VYGOTSKI, 1987, p.187).


Vygotski considera ainda que aprendizagem não equivalha a desenvolvimento, mas toda aprendizagem construída de forma organizada torna-se um desenvolvimento mental e alavanca uma série de processos evolutivos que jamais se efetuariam separados da aprendizagem, sendo assim, a aprendizagem é necessária ao processo de desenvolvimento cultural organizado, e toda boa aprendizagem é aquela que precede o desenvolvimento. (BAQUERO, 1998, p.98).
A partir da compreensão de que o bom ensino deve operar sobre as conquistas de desenvolvimento ainda em aquisição e adquiridas com auxílio do outro, surge o conceito de desenvolvido por Vygotski de Zona de Desenvolvimento Próximo:

A distância entre o nível evolutivo real determinado pela resolução independente do problema e o nível de desenvolvimento potencial determinado pela resolução de um problema sob a orientação de um adulto ou em colaboração com os colegas mais capazes. (VYGOTSKY, 1998, p.86).


Este é um dos conceitos centrais da teoria de Vygotski, é a chamada zona de desenvolvimento próximo, que é a distância que existe entre o que a criança sabe fazer sozinha e o que pode fazer com a ajuda do outro.
Segundo Beatón (2005) a zona de desenvolvimento próximo é muito mais do que um simples espaço psicológico, é um espaço de mediação, espaço de relação social, onde é aplicada a lei genética fundamental de Vygotski, que diz que todo desenvolvimento dos conteúdos cognitivos, emocionais e volitivos, primeiro se produzem de forma social, entre as pessoas, e depois de forma intrapsicológica, no interior do próprio sujeito. 
 A zona de desenvolvimento próximo é uma fundamentação do processo de ensino, onde se define o ensino como precursor e guia do desenvolvimento psicológico, é uma zona dinâmica, construída de forma interativa, determinado pelo nível de desenvolvimento da criança, e também pelas formas de ensino envolvidas na atividade (CUBERO e LUQUE, 2004, p.100).
No desenvolvimento a imitação e o ensino desempenham um papel de primeira importância. Põem em evidência as qualidades especificamente humanas do cérebro e conduzem a criança a atingir novos níveis de desenvolvimento. A criança fará amanhã sozinha aquilo que hoje é capaz de fazer em cooperação. Portanto o único tipo correto de ensino é aquele que segue em frente relativamente ao desenvolvimento e o guia; deve ter por objetivo não as funções maduras, mas as funções em via de maturação. (VYGOTSKY apud LIBÓRIO, 2000, p.01)

É de suma importância este conceito de zona de desenvolvimento próximo e suas aplicações para o ensino em educação regular, especial ou inclusiva, pois ela explica as diferenças individuais no trabalho pedagógico, sendo estas diferenças explicadas pelos diferentes níveis de desenvolvimento real, com diferentes amplitudes de zona de desenvolvimento próximo, e não somente isso, tal conceito ainda aponta possibilidades de desenvolvimento de forma ilimitada através do auxílio do professor, ou de colegas mais capazes, gerando possibilidades de independência e autonomia.
Pode-se então resumir a chamada zona de desenvolvimento próximo de Vygotski como sendo a “região dinâmica da sensibilidade na qual se pode realizar a transição do funcionamento interpsicológico para o funcionamento intrapsiclógico” (WERTSCH  apud CUBERO e LUQUE, 2000, p.100).         
O trabalho do professor, dentro da zona de desenvolvimento próximo tem que ser realizado com grupos de alunos, em função da demanda individual de cada um, e não de forma homogênea, levando-se em conta os níveis de ajuda que necessitam cada sujeito em processo de desenvolvimento (BEATÓN, 2005, p.242). Estes conceitos podem ser aplicados a quaisquer alunos. O aluno com necessidades educacionais especiais possui sua zona de desenvolvimento próximo, entretanto, com amplitude diferenciada, mas com a mesma dinâmica e estrutura de um aluno dito regular, necessitando, porém, de maiores níveis de ajuda.

A amplitude da zona de desenvolvimento também aumenta ou diminui, em função da estimulação recebida e da qualidade desta, portanto, o novo desenvolvimento real estará também influenciando a formação da amplitude da zona de desenvolvimento proximal. Uma pessoa com problemas mentais, não obstante, sua característica inicial, pode melhorar sua amplitude, em função da ajuda que recebe ou da qualidade da mesma ao longo do seu processo de educação. (BEATÓN, 2005, p.233).

Beatón (2005) trabalha a categoria “outro”, citado no conceito de zona de desenvolvimento proximal, podendo incluir, além de professores, pais, colegas, ainda também as tecnologias interativas como os computadores, por exemplo. Ele ainda aponta a possibilidade do “outro” poder ser ainda o próprio aluno, ou seja, o “eu e eu mesmo”, isso somente quando o aprendiz atinge total autonomia dentro de um dado processo de aprendizagem, sendo capaz de construir aprendizagens de forma independente. Mas dentro do nosso enfoque de pesquisa, este autor cita ainda o papel do coletivo escolar realizando o papel do “outro” no ensino. Aqui podemos concluir que a segregação ou mesmo o isolamento que se verifica em alguns sistemas de ensino, ditos especiais, pode não criar uma zona de desenvolvimento próximo favorável nos alunos, ou o que é pior ainda, pode-se criar uma zona de desenvolvimento próximo negativa, pois nem todo ensino é capaz de gerar aprendizagem.
As aulas quando inseridas dentro da zona de desenvolvimento próximo permitem trabalhar sobre as funções ainda em desenvolvimento, que não foram plenamente consolidadas, criando uma estreita conexão entre aprendizagem e desenvolvimento, contribuindo para a formulação de indicadores didáticos e avaliativos para o desenvolvimento infantil, quando favorecido pela construção de um cenário de aula que considere o contexto sócio-histórico dos alunos.
As teorias de Vygotski se tornam fundamentais para a compreensão e o resgate do valor e importância do jogo e do brinquedo. A contribuição principal de Vygotski sobre o jogo ou o brinquedo, é a sua valorização, acrescida pela estreita relação que este autor estabelece entre o jogo e a aprendizagem.

Uma das situações que se apresentam como importantes para a análise do processo de constituição do sujeito é a brincadeira infantil. Rompendo com a visão tradicional de que a brincadeira é a atividade natural de satisfação de instintos infantis, Vygotski apresenta o brincar como atividade em que tanto significados sociais e historicamente produzidos são veiculados quanto novos podem ali emergir. (ZANELLA e ANDRADA, 2002, P.128).

As operações e ações no jogo não são fantásticas, mas reais e sociais, e através delas a criança assimila a realidade humana. (LEONTIEV,1988, p.138). Na brincadeira infantil é possível criar uma verdadeira zona de desenvolvimento próximo, capaz de promover a apropriação dos códigos e condutas sociais pela criança.

A importância dos brinquedos para o desenvolvimento humano reside no fato de que eles não determinam a ação da criança, pois os objetos perdem sua força determinadora. (ZANELLA e ANDRADA, 2002, p.129).


As intenções e ações lúdicas no jogo possibilitam a criação da zona de desenvolvimento proximal, promovendo a internalização do real e o desenvolvimento cognitivo. Dentro da contradição da criança entre a impossibilidade do desejo e a necessidade imediata do querer fazer, Vygotski então afirma:

Esta subordinação estrita às regras é quase impossível na vida; no entanto torna-se possível no brinquedo. Assim o brinquedo cria uma zona de desenvolvimento proximal da criança (VYGOTSKY, 1998, p.134).


Em qualquer ação produtiva do nosso cotidiano, o significado e o sentido estão sempre interligados de uma dada forma, ou seja, cada atitude tem um objetivo ligado a um motivo, é o seu sentido; e cada operação por nós realizada possui um dado conteúdo, ou seja, o seu significado. Porém no brincar da criança, essas relações não são as mesmas, ocorrendo uma ruptura entre sentido e significado. Para uma criança que brinca de “cavalinho”, a vassoura retém seu significado, ou seja, continua sendo uma vassoura, porém ela adquire o sentido de cavalo na imaginação infantil, assumindo seu sentido lúdico.

[...] a criança vê um objeto, mas age de maneira diferente em relação ao que vê. Assim, é alcançada uma condição em que começa a agir independentemente daquilo que vê. (VYGOTSKI, 1998, p. 127).


O jogo para Vygotski , ao permitir a criação da zona de desenvolvimento próximo, proporciona alterações das estruturas cognitivas, não sendo apenas uma simples assimilação daquilo que a criança percebe da realidade. Ele possui um duplo sentido: 1 – o exercício imaginativo (imaginar situações, representar papéis e situações cotidianas); 2 – o caráter social (conteúdos e regras inerentes ao contexto). Dentro desta esfera do imaginário da criança, ao se criar uma zona de desenvolvimento próximo, abre-se possibilidades ao desenvolvimento que segue e é guiado por estes processos criativos do imaginário. (LIBÓRIO, 2000)
A plasticidade cerebral humana é fundamentada em dois tipos de conduta, a atividade reprodutora (memória) e a atividade criadora (imaginação), sendo a segunda, a mais importante para o processo de desenvolvimento. Estes dois elementos estão constantemente integrados aos jogos e brincadeiras. Podemos então permitir uma relação eficaz e qualitativa entre as atividades lúdicas e o desenvolvimento cognitivo de crianças, desde que este ambiente seja construído de forma adequada e contextualizada, possibilitando flexibilidade e mudanças em sua elaboração. (LIBÓRIO, 2000)

Assim, através da imaginação, o sujeito ultrapassa seus limites, assimila experiências históricas e as excede, comprovando cenários imprevisíveis que objetivam algo da infinitude das possibilidades de existência humana. Por isto é que a imaginação projeta o ser humano para o futuro, pois vai além do que está posto, vai mais adiante, possibilita que se desconstrua a realidade dada e que esta seja reconstruída a partir dessa mesma realidade. (VYGOTSKI apud ZANELLA e MUNHOZ, p.290, 2008).

Dentro do jogo, a criança também pode produzir muito além daquilo que conhece ou sabe. Todos nós conhecemos o grande papel que desempenha a imitação dentro dos jogos infantis. Com muita frequência, estes jogos são apenas um eco do que as crianças viram e escutaram dos adultos, não obstante estes elementos da sua experiência anterior nunca se reproduzem no jogo de forma absolutamente igual e como aconteceu na realidade. O jogo da criança não é uma recordação simples do vivido, mas sim a transformação criadora das impressões para a formação de uma nova realidade que responde às exigências e inclinações da própria criança. (LIBÓRIO, 2000)
Logo, o brincar da criança passa a ser uma transformação criadora, ela também tem a possibilidade de criar, mesmo sob diferentes escalas, mas cria a partir do que conhece e das oportunidades oferecidas, dentro de suas próprias necessidades e preferências. Dentro do jogo resgata-se na criança sua posição de sujeito histórico e social, pois ela cria, ela imagina, ela pode participar ativamente do processo lúdico.
Tais processos criativos se dão dentro da zona de desenvolvimento próximo, o jogo ou brincadeira, numa esfera lúdica, ajuda a construir a subjetividade do sujeito, e neste ambiente imaginativo-criativo e simbólico, permite-se alterações qualitativas das estruturas mentais superiores, promovendo o seu desenvolvimento pleno.
Portanto, os jogos e brincadeiras possuem papel fundamental para a formação da plasticidade cerebral através de processos criativos, que irão transformar qualitativamente as funções cerebrais.






1.2     A Representação Simbólica

A função simbólica é o poder de buscar para um objeto sua representação e para a sua representação um signo. (WALLON apud SILVA, 2007, p. 16).


As sociedades humanas são marcadas pelo uso dos signos.  As relações humanas são relações semióticas, ou seja, são relações intermediadas pelo uso dos símbolos, e é justamente na infância onde essas funções psicológicas superiores tem sua gênese.

O pensamento simbólico ou representacional é o que melhor qualifica a psicologia humana. Vivemos em uma sociedade baseada em trocas simbólicas. (SILVA. 2007, p. 2).


Na visão de Vygotsky, os signos funcionam basicamente como ferramentas, assim como no trabalho humano, onde os instrumentos como martelo, serrote, pá, etc., são utilizados para transformarem a natureza, assim também tais signos também são usados para transformação, não do meio físico, mas sim da própria consciência humana. Para MARX (apud SOUZA e FIGUEIREDO, 2004, p. 223) a essência do ser humano está no trabalho, é essa atividade vital que distingue o homem imediatamente da atividade animal, fazendo dele um ser genérico, consciente e livre. Os elementos fundamentais do trabalho são os meios de produção – matéria prima e os instrumentos – e a força de trabalho – a ação humana. Através de diferentes épocas podem-se distinguir dentro da história humana, diferentes relações de trabalho. O homem, de acordo com o marxismo, transforma a natureza e é também transformado por ela, e essa relação dialética opera uma transformação na ação humana e uma revolução nas relações sociais. Assim também pensava Vygotsky, e deve-se a ele o grande mérito em realizar a transposição de tais conceitos marxistas para o estudo da psicologia humana, mudando por completo todos os paradigmas então vigentes, enxergando de forma dialética o psiquismo humano, onde os signos, que passam a ocupar posição fundamental, são agora concebidos como ferramentas psicológicas e capazes de promover revoluções no desenvolvimento das funções psicológicas superiores humanas.

Entretanto, Vygotsky assinala que existe uma diferença sensível entre eles, pois o instrumento psicológico se destaca do instrumento técnico pela direção de sua ação: o primeiro se dirige ao psiquismo e ao comportamento, enquanto o segundo, constituindo também um elemento intermediário entre atividade do homem e o objeto externo, é destinado a obter uma mudança no objeto em si. (JOBIM e SOUZA, 1994, p. 125)


A função simbólica surge na criança a partir dos 2 anos de idade (SILVA, 2007, p. 2) e se dá através da maturação dos centros nervosos (mielinização), e principalmente através das intervenções do meio social que passa a dar significado às configurações posturais, ou seja, as funções tônicas e cinéticas da criança passam a possuir intenções e sentido, configurando-se assim o nascimento do gesto.

No início do desenvolvimento, as configurações posturais, garantidas pela dialética entre as funções tônica e cinética, passam a prenunciar, pela intervenção do entorno social que dá significado a essas configurações posturais, a função simbólica ou representativa. (SILVA, 2007, p. 12).


Segundo Wallon, os desenvolvimentos motores e mentais estão estritamente relacionados entre si, desde as suas origens (SILVA, 2007, p. 15). Entretanto, esta relação não é linear, mas marcada por descontinuidades, caracterizando uma função de ordem dialética.

Desse modo, não é qualquer ato que se tornará símbolo ou que culminará no símbolo, mas exclusivamente o gesto, ou ato carregado de intenção e, por isso mesmo, expressivo. O gesto prefigura o símbolo, assim como o grito prenuncia a palavra. Entre um e outro, contudo, existe filiação e oposição. A criança terá de desenvolver sua capacidade de controlar os gestos e movimentos para que a representação simbólica apareça. Mas, para que a transição entre o motor e o representacional ocorra, é preciso ainda que surja uma nova função psicológica: a função simbólica. (SILVA, 2007, p. 16).


Sendo assim, vemos que o elo entre a chamada inteligência sensório-motora e a inteligência discursiva, ou seja, entre os aspectos motores e representacionais, é justamente a chamada função simbólica. A função simbólica é o poder de dar significado às coisas. Quando uma coisa substitui outra coisa, quando um gesto é imbuído não somente de ação biomecânica, mas rico em significados e expressões subjetivas, ou até mesmo quando uma pessoa passa a representar uma outra pessoa, têm-se assim a chamada função ou representação simbólica. É essa a principal característica da função simbólica, o poder de substituição. Não representa apenas o somatório de gestos ou signos, ela estabelece a ligação plena e eficaz entre o objeto, ato, pessoa ou situação e o seu signo ou significado. Um exemplo importante é na brincadeira de faz-de-conta, onde as crianças são capazes de substituir um objeto por outro, ou de fazer o ausente algo presente, tudo dentro da esfera do representativo, do simbólico.

É a função simbólica, portanto, que possibilita a passagem entre um pensamento concreto e outro abstrato ou representativo. Ela é uma decorrência do desenvolvimento orgânico e, nos casos em que estiver ausente, o sujeito não saberá relacionar um objeto com seu respectivo signo ou representante. No entanto, seu surgimento, por volta dos dois anos de idade, não garante ainda que o pensamento representativo esteja em pleno funcionamento. (SILVA, 2007, p.16)





BIBLIOGRAFIA


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BAQUERO, R., Vygotsky e a Aprendizagem Escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
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COUTO, N. S. O Faz de Conta como Atividade Promotora do Desenvolvimento Infantil e Algumas Contribuições Acerca de suas Implicações Para o Aprender a Ler e Escrever. 2007. 206f. Dissertação (Mestrado em Ensino na Educação Brasileira). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista. Marília, 2007.
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Um comentário:

  1. A educação, por sua vez, pode ser definida como o desenvolvimento artificial da criança. A educação é o domínio engenhoso dos processos naturais do desenvolvimento. A educação não apenas influi sobre uns ou outros processos do desenvolvimento, como também reestrutura, da maneira mais essencial, todas as funções da conduta. (VYGOTSKY, 1987, p. 187). essa citação não tem referencia

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