A fim de compreendermos o atual processo de intensificação do trabalho docente e o aumento acelerado da precarização do trabalho nas escolas (públicas e privadas) em Goiás durante a pandemia, faz-se antes necessário entender o contexto e a dinâmica da inclusão do Ensino à Distância nas escolas e também destacar a real situação dos professores diante das limitações e complexidades de um novo modelo de ensino mediado por tecnologias virtuais, cuja implantação fora necessária no contexto de pandemia, porém, imposta de forma unilateral, burocrática e sem consulta ou diálogo com alunos, professores e as famílias envolvidas no processo.
No dia 11 de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) elevou o estágio de contaminação pelo novo coronavírus à pandemia. A chamada pandemia de covid-19, segundo especialistas da área da saúde, foi deflagrada de forma tardia pela OMS por questões geopolíticas e por pressão de interesses econômicos, tal atraso provocou consequências catastróficas e irreparáveis no mundo todo, haja visto a rapidez de propagação e letalidade do vírus Sars-Cov-2. Em menos de três meses o vírus foi capaz de dar a volta ao mundo e atingir a todos os países do planeta. A intensa movimentação de pessoas e de mercadorias em um mundo globalizado ajudaram a acelerar o processo de propagação, potencializado ainda mais por posturas negacionistas de governantes e gestores de vários países. A proliferação de uma doença pulmonar causada por um vírus desconhecido tem atingido e impactado sobremaneira e de forma mais violenta países e regiões pobres, onde a falta de assistência médica e a miséria se tornam obstáculos e barreiras para o enfrentamento eficaz contra a pandemia.
Em Goiás, o governo estadual, através do Decreto n. 9633 de 13 de março de 2020 determinou a situação de emergência em Saúde Pública do Estado de Goiás em razão da pandemia do novo coronavirus, e entre as várias medidas contidas no decreto estadual havia a obrigatoriedade de fechamento de todo o setor produtivo e também a paralisação de todas as instituições educacionais na forma presencial a partir do dia 18 de março de 2020, ou seja, creches, escolas e universidades, públicas ou privadas, deveriam suspender todas as atividades presenciais na data prevista. Em seguida, todos os municípios do estado também emitiram decretos similares regulamentando as ações de enfrentamento à pandemia no âmbito local, paralisando as atividades educacionais presencias de forma em geral. E no dia 15 de março o Supremo Tribunal Federal, através de sessão em vídeo conferência, delega aos governos estaduais e governos municipais o poder e a autonomia para criação de medidas de controle sobre as regras de isolamento social, cabendo ao governo federal a coordenação nacional sobre o combate ao novo coronavirus e o repasse de verbas.
Ainda no dia 15 de março a Secretaria Estadual de Saúde (SES-GO) publica a nota técnica n.1-2020, que recomendava também o fechamento de todas as instituições educacionais por 15 dias, em virtude da pandemia do novo coronavírus. Já o Conselho Estadual de Educação (CEE-GO) através do seu parecer 02-2020 autoriza o regime especial de aulas remotas (EaD) em substituição às aulas presenciais em todo o sistema educativo do Estado de Goiás. A partir de então, o sistema de aulas virtuais e à distância surge como modelo emergencial e necessário para continuidade das atividades pedagógicas de escolas e universidades em todo o Estado de Goiás.
Todos os professores, alunos e pais de alunos tiveram que se adaptarem ao novo formato de aulas remotas que passou a ser implementado de forma provisória, emergencial e aligeirada pelas Secretaria Estadual de Educação (SEE-GO) e também pelas secretarias municipais de educação localizadas em todas as cidades de Goiás. Além de aligeirada e improvisada, a organização e decisões sobre a mediação de aulas por tecnologias virtuais foi realizada na maioria das vezes por escolas públicas sem a participação dos professores ou pais de alunos. Grande parte dos professores não dispunham na época de tecnologias adequadas para a realização das aulas e também muitos não possuíam se quer qualquer intimidade com as chamadas tecnologias digitais de ensino. Não foram ofertados pelas secretarias de educação municipais ou pelo governo estadual qualquer forma de subsídios para a aquisição de computadores e instalação de internet de qualidade nos lares dos docentes, tão pouco foi oferecido capacitação ou formação continuada adequada e em tempo hábil na área de informática para a classe docente. Se houve imensa dificuldade de adaptação dos professores ao chamado modelo de aulas remotas, imagina então para a maioria dos alunos pobres de escolas públicas localizadas nas periferias das cidades goianas. Os relatos e testemunhos são de professores sobrecarregados e exaustos de atividades on-line, alunos abandonando as aulas e muitas reclamações dos pais que afirmam não terem tempo ou disponibilidade de auxiliar os filhos nas atividades escolares.
Os inúmeros relatos em jornais e em redes sociais são de professores ministrando aulas via grupos de whastsapp, onde os alunos acessam os conteúdos das aulas através dos celulares de seus pais, haja visto que a maioria são oriundos de famílias pobres e moradores das periferias das cidades em Goiás, não possuindo computadores ou internet instalada em seus lares, restando apenas os celulares dos pais que passaram a ser compartilhados com os vários filhos nas atividades escolares remotas, mas somente quando havia disponibilidade financeira para compra de créditos para utilização dos celulares.
Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad 2018 - IBGE) o país tem um contingente muito grande de excluídos digitais, onde cerca de 46,96 milhões, ou seja, 25% da população não tem acesso à internet , e a cada cinco lares no Brasil, um (01) ainda não possui internet. Nas áreas rurais ou em regiões onde a renda da população é mais baixa, as diferenças aumentam ainda mais. Segundo essa mesma pesquisa do IBGE, apenas cerca de 78,3% da população possui celular com acesso a internet, sendo que 5,1% dos lares brasileiros não possuem telefone fixo ou móvel. E é exatamente essa a realidade familiar de grande parte dos alunos das escolas públicas em Goiás. A pandemia vem novamente para desmascarar a triste realidade de exclusão e de pobreza em que vive grande parte da população brasileira, e além disso, o EaD que passa a ser implementado dentro da pandemia em Goiás vem provocando também o aumento das desigualdades entre aqueles que possuem acesso à internet de qualidade e os que não possuem acesso. Desta forma ocorre uma desigualdade de oportunidade nos processos de ensino-aprendizagem e ainda uma falta de equidade no acesso a educação que deveria ser igualitária e ainda um direito de todos.
Tabela - Pnad 2018 (IBGE) |
A exclusão digital passou a ser apenas um dos empecilhos e problemas enfrentados por alunos e professores durante este período de pandemia em Goiás. Além da luta por acesso à uma internet de qualidade para a realização do trabalho e de todas as demais atividades educacionais, tem ainda o enfrentamento diário contra o vírus Sars-Cov-2, numa frenética e contínua tentativa de querer se manter vivo. Em um contexto assustador de pandemia, com cerca de mil mortes diárias provocadas pela falta de assistência médica, onde alunos e professores presenciam quase que cotidianamente a perda de renda por questões do desemprego familiar, abalos emocionais causados por mortes de parentes ou amigos próximos, tudo isso ao final acaba gerando um grande estresse e fadiga em todos, e exatamente num momento crítico da pandemia onde o vírus continua descontrolado e se propagando de forma cada vez mais rápida e intensa.
Nas escolas públicas em Goiás, com os baixos salários, a massificação de alunos por turma, as cargas horárias excessivas, o não pagamento do piso salarial, a violência dentro das escolas e a total falta de valorização docente, já eram componentes que antes mesmo da pandemia serviam como potencializadores da precarização do trabalho do professor. Entretanto, neste novo contexto de pandemia, caracterizado pelo trabalho remoto, a precarização e intensificação do trabalho aumentaram consideravelmente, e tem levado vários professores de escolas à exaustão e ao adoecimento por doenças psicossomáticas. O trabalho remoto da forma em que está colocado e em tempos de pandemia não pode ser considerado um privilégio diante daqueles que não tem outra opção, a não ser realizar o trabalho presencial ou essencial. O que se observa na prática cotidiana dos professores que ministram aulas em EaD durante o período de pandemia é apenas uma imposição burocrática e legalista de gestores de escolas e das secretarias de educação para o simples cumprimento de conteúdos e cargas horárias das disciplinas escolares, sem respeitar o tempo e o processo de ensino-aprendizagem num contexto complexo e trágico de uma pandemia. O que se observa atualmente é uma cobrança sem limites em cima dos professores e também dos alunos para transmissão e efetivação de conteúdos tradicionais, que na maioria das vezes não conseguem dialogar ou contextualizar o aluno aos dilemas, dficuldades e desafios do tempo presente, ou seja, de um ensino em tempos de pandemia. É como ensinar física atualmente sem falar de crescimento exponencial numa pandemia; falar de matemática sem relacionar os números aos pontos de inflexão da curva de contágios; comentar biologia sem falar de morcegos e vírus; discutir sociologia sem interpretar as relações entre destruição da natureza, capitalismo e pandemia; ensinar educação física sem correlacionar o cancelamento dos jogos olímpicos e a pandemia ou analisar futebol sem citar os estádios sem as torcidas. Não faz sentido ensinar conteúdos tradicionais nas escolas sem abranger o momento histórico marcado pela pandemia e as suas consequências globais. Percebe-se assim que o tempo, as metodologias, os conteúdos e os temas das aulas devem ser sim modificados e ressignificados para o momento atual, e que o ensino não pode mais se pautar nos paradigmas daqueles anteriores à pandemia, pois o ensino virtual jamais poderá substituir o ensino presencial, ele é apenas um instrumento pobre, vazio, limitado e emergencial e que não pode ser generalizado ou priorizado, porém, ele se faz necessário a fim de se evitar os contágios e as aglomerações em salas de aulas, daí a importância e urgência em reinterpretar o ensino em tempos de pandemia. Pois, o mundo jamais será o mesmo a partir de dezembro de 2019, com a descoberta do novo coronavírus, não existirá jamais um "novo normal", e nem tão pouco as escolas ou as aulas serão como antes e nem devem ser. Faz-se então relevante ouvir os professores e os alunos para se construir um novo processo de ensino e aprendizagem dialógico, humanizado e contextualizado, capaz de trazer respostas e soluções a este novo tempo inaugurado pelo vírus Sars-Cov-2, que virou o mundo de ponta cabeça e colocou em xeque a própria ciência moderna, expondo as suas contradições, seus limites e contrastes. Exigir as mesmas coisas, as mesmas cargas horárias, os mesmos conteúdos, a mesma rotina dentro da velha burocracia escolar é subestimar o poder e a letalidade do vírus, e ao mesmo tempo é subestimar também a inteligência, a criatividade e os saberes de professores e alunos, que juntos terão que lutar para construírem um modelo novo e diferente de aprendizagem e de escola capaz de superar as limitações e a miséria do ensino virtual, que seja também capaz de anular a precarização do trabalho e as imposições burocráticas de uma velha escola anterior à pandemia que ainda insiste em querer existir e em apenas formar mão de obra barata para um mercado de mão de obra barata que já nem existe mais, pois o vírus só escancarou ainda mais o submundo do desemprego e da informalidade.
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