Páginas

sábado, 3 de outubro de 2020

De Volta para o Passado: da gripe espanhola à covid-19

 



(Escrito por: Renato Coelho)


De tempos em tempos o mundo é surpreendido por pandemias capazes de provocar  milhões de contágios e de mortes em todos os confins do planeta. Porém, o que temos observado ao longo da história é que a frequência no surgimento de pandemias tem sido cada vez menores, ou seja, em intervalos mais curtos de tempo surgem novas pandemias, e não somente isso, os vírus que originam as pandemias são cada vez mais agressivos, contagiosos e também mais letais. Os vírus são elementos essenciais para a manutenção da vida na Terra e as pandemias são na sua maioria fenômenos da própria natureza e que representam mecanismos de preservação das espécies. Entretanto, estes fenômenos da natureza podem também ser antecipados e potencializados pela ação humana intencional e destrutiva sobre o planeta.

Em 1918, houve a pandemia da chamada gripe espanhola, cujo gatilho inicial da explosão de casos foi provocado pelo grande movimento de soldados e de tropas durante a I Guerra Mundial. Já a atual pandemia do novo coronavirus tem como principal agente catalisador a grande mobilidade humana em aeroportos e rodovias de todo o mundo neste período denominado de globalização. Somam-se ainda para esse processo de crescimento viral, a grande destruição da natureza, já que desmatamentos, extinção de espécies e a captura de animais selvagens expõe a humanidade a uma infinitude de novos e desconhecidos  vírus.

O contexto do mundo em 1918 era totalmente diferente do atual, as relações político-econômicas eram muito distintas destas em que vivemos neste início do século XXI. Naquela época se expandia o modelo fordista de produção nas fábricas, dentro de um processo linear, repetitivo, especializado de produção capitalista e ainda caracterizado pela expansão do consumo e de novos mercados. A ciência também se desenvolveu muitíssimo neste complexo período de guerras entre as nações durante as primeiras décadas do século XX. O conhecimento científico alcançado e todo o  desenvolvimento tecnológico adquirido nestes últimos cem anos permitiram grandes conquistas e feitos para a humanidade em várias áreas como na medicina, física, química e engenharias. A ciência hoje atingiu níveis de complexidade e de especializações inimagináveis para as mais otimistas mentes das primeiras décadas do século passado. Entretanto, mesmo após passado um século na história, existem  muitas semelhanças entre a pandemia da gripe espanhola ocorrida em 1918 e a pandemia atual do novo coronavirus, mesmo considerando os cenários e os contextos tão distintos entre estes dois momentos importantes da história recente. Cem anos separam essas duas pandemias e muitas transformações e mudanças ocorreram na história, na economia, na sociedade e na cultura humana, porém, vários acontecimentos coincidentes e fatos irônicos ainda insistem em perdurar ou se  repetirem na história destas duas pandemias separadas pelo espaço de tempo de mais de um século. O extraordinário desenvolvimento da ciência atual não foi suficiente e nem capaz de derrubar crenças ou de abalar valores, preconceitos e paradigmas que remontam das primeiras décadas do século passado, mas que se vislumbram também no  atual momento da pandemia da covid-19. Isso demonstra na verdade que todos os conhecimentos e saberes produzidos pela complexa, moderna e fascinante ciência deste século XX,  não esteja tão facilmente acessível à maior parte da população mundial quanto parece, exceto na forma de mercadorias tecnológicas, colaborando assim para a alienação de indivíduos e que por sua vez favorece a uma maior manipulação, controle e opressão por parte dos Estados nacionais.

Existem várias teorias sobre o surgimento da gripe espanhola, fatos históricos importantes apontam que o vírus tenha surgido pela primeira vez nos EUA em 1918, no Fort Riley, que era uma instalação militar no estado do Kansas e que, logo após  a deflagração da I Guerra Mundial e o contínuo deslocamento das tropas americanas  e de soldados pela Europa, provocaram a partir daí vários surtos de casos em diferentes partes do mundo, convergindo para o surgimento da pandemia de 1918 (SILVA, 2000).

O nome de gripe “espanhola” surge porque a Espanha por não participar da I Guerra Mundial, tinha total liberdade por parte da imprensa para a divulgação sobre os relatos e  acontecimentos sobre a I  Guerra Mundial, incluindo as estatísticas e mortes na pandemia pelo mundo, daí o nome de “gripe espanhola” , pois a pandemia passou a ser conhecida em todo o mundo graças ao trabalho de divulgação realizado pela imprensa espanhola. Na maioria dos países que estavam envolvidos na guerra, era proibido a publicação sobre assuntos ligados à gripe espanhola, numa tentativa clara de esconder da população os números de infectados e de mortos naquela pandemia. Os próprios governos proibiam ou mesmo manipulavam os dados sobre a pandemia da gripe espanhola em seus países, a fim de não permitir que a propagação da doença afetasse direta ou indiretamente  a popularidade destes governantes ou os rumos da guerra.

Naquele período não se sabia qual era o agente que provocava a gripe espanhola, não havia se quer uma visualização dos vírus, pois o microscópio eletrônico foi inventado somente duas décadas depois, em 1940. E o verdadeiro vírus causador da gripe espanhola só foi descoberto recentemente, e hoje é conhecido como H1N1 o vírus que devastou o mundo a partir de 1918. Mas a medicina daquele início de século XX era ainda pouco desenvolvida para a compreensão da dinâmica de uma pandemia. Os médicos não sabiam ao certo os mecanismos exatos de transmissão da gripe espanhola e nem mesmo dominavam medicamentos eficientes para tratamento dos doentes, ainda não havia sido descoberto os antibióticos. E o que era pior, a maioria da população mundial não tinha acesso à saúde, medicamentos ou ao atendimento médico hospitalar de qualidade. Bilhões de trabalhadores em todo o mundo vendiam as suas forças, tempo, energias e toda a saúde para a produção de capital, e acabavam sendo tratados  apenas como objetos e mão de obra barata, que poderia ser descartável e substituída a qualquer momento que se quisesse. Naquele período, assim como hoje na pandemia da covid-19, a maior parte das mortes se deve não às formas agressivas e desconhecidas de agir do vírus Sars-Cov-2, mas sim à total desassistência médico-hospitalar dos trabalhadores no mundo capitalista, ficando sempre o trabalhador entregue à própria sorte sem assistência de saúde de qualidade, sem respiradores e sem UTI´s, seja um trabalhador do norte da Itália, da França, dos EUA ou um trabalhador da cidade de Manaus no Brasil. O vírus Sars-Cov-2 foi identificado e todo o seu código genético decifrado em apenas alguns meses após a descoberta do primeiro surto em Wuhan na China. Vacinas estão sendo fabricadas e testadas em tempo recorde, porém, a velocidade de propagação do vírus Sars-Cov-2, que é a mesma velocidade de propagação de mercadorias e de pessoas na sociedade capitalista, tem ceifado milhões de vidas também em tempo recorde, numa sociedade onde tempo é dinheiro, e onde a vida humana não vale mais do que o lucro do capital. Quanto menos valor tem a vida humana, mais fácil é para o vírus abreviar e aniquilar essas vidas.

Provavelmente o grande fluxo de soldados que retornaram para os seus países de origem, após o final da I Guerra Mundial, tenham de fato potencializado as transmissões no mundo e assim dado início à pandemia da gripe espanhola de 1918. Atualmente se sabe também que os principais locais propagadores do novo coronavirus foram inicialmente os aeroportos de todo o mundo e em seguida as rodovias dos países. O vírus se espalhou pelo mundo primeiramente viajando através dos fluxos de aviões pelo mundo e em seguida o vírus passou a viajar pelas estradas e rodovias mais movimentadas dos países capitalistas, e em virtude disso, primeiramente foram atingidas pela pandemia primeiramente os grandes centros urbanos e capitais com aeroportos de grande movimentação, e em seguida as cidades e regiões periféricas do interior através de suas malhas viárias.

A gripe espanhola também recebeu vários nomes diferentes, dependendo do país que era atingido pela pandemia. Na Espanha ela era chamada de “gripe da Rússia”. Em alguns países europeus era chamada de “gripe chinesa”. No Brasil foi denominada de “gripe espanhola”. Hoje na pandemia do novo coronavirus, houveram tentativas de ideologização ao tentar vincular o vírus à China, denominando-o pejorativamente e de forma preconceituosa de “vírus Chinês”, numa clara tentativa política em querer desvincular o vírus e a pandemia do seu verdadeiro causador: o sistema de produção capitalista.

Segundo estudos atuais a gripe espanhola matou entre 50 a 100 milhões de pessoas e cerca de 600 milhões de pessoas foram infectadas em todo o mundo. A pandemia da gripe espanhola que teve início em 1918, perdurou por cerca de três (3) anos, finalizando a propagação e os contágios somente em 1921, mas acabou se transformando numa endemia, já que o vírus H1N1 existe ainda hoje.

No Brasil os números de mortes pela gripe espanhola foram subnotificados, e os números oficiais da época apontam um total de 35 mil mortes, mas estudos apontam que o número total tenha sido muito superior ao divulgado pelo governo. No país a gripe espanhola foi denominada por muitas autoridades políticas e por gestores como sendo apenas uma "gripezinha". Na época existiam várias recomendações para o tratamento que iam desde a famosa quinina, remédio extraído do caule de uma árvore, e que ainda hoje  é o principal elemento ativo do medicamento farmacêutico denominado Cloroquina, recomendado para o tratamento de pacientes em estado grave da covid-19, mas que não possui nenhuma evidência científica verdadeiramente comprovada, também foi muito recomendado o uso de cachaça com mel e limão (aqui se dá o surgimento no Brasil da mais famosa bebida brasileira, a “caipirinha”). Porém, através de experiências práticas e mesmo não tendo conhecimento sobre a ação dos vírus, se sabia na época da eficácia do distanciamento e do isolamento social para o controle e mitigação dos contágios da doença, assim como também da utilização de máscaras em locais públicos.

Assim vemos que a ação da pandemia de gripe espanhola no mundo foi devastadora ao provocar um número exagerado de mortos em todo o mundo (estima-se um total de 100 milhões de mortos nas três ondas da pandemia de gripe espanhola entre 1918 e 1921), e também a atual pandemia da covid-19 também tem contabilizado números assustadores de mortos e de contágios. Em outubro de 2020 já foram registrados mais de 1 milhão de mortos em apenas 6 meses desde o início dos contágios na China e cerca de 35 milhões de contaminados em todo o planeta segundo dados divulgados pela Universidade de Jonhs Hopkins. Em que pese a utilização político-ideológica da pandemia em ambos os momentos analisados, também a postura negacionista em relação à ciência, em questões ligadas à realidade das transmissões e dos mecanismos virais na gripe espanhola e na covid-19, fatores esses que contribuíram e que contribuem  sobremaneira para o aumento do número de óbitos e também para a prorrogação no tempo de não controle da pandemia, ou seja, para a manutenção do descontrole da pandemia, como assistimos atualmente na maioria dos países do mundo, inclusive no Brasil.

Destacamos ainda que passados cerca de 100 anos entre ambas epidemias analisadas, muita coisa ainda não mudou. As posturas negacionistas, as limitações da ciência, a falta de assistência social aos trabalhadores em tempos de pandemia, a falta de hospitais e de atendimento à saúde dos trabalhadores, demonstram que numa sociedade de classes baseada no modelo de produção capitalista, a vida humana não possui valor ou importância a não ser para produção do próprio capital. Assistimos o pleno funcionamento das atividades econômicas em pleno crescimento exponencial de contágios pelo vírus Sars-Cov-2, pois ao trabalhador pobre não lhe é dado  nenhuma assistência social de modo a garanti-lhe o isolamento social pleno e eficaz para evitar a sua contaminação. O que se percebe é prática de políticas escancaradas de exposição do trabalhador ao vírus nos locais de trabalho e nos transportes e locais públicos, cujo resultado final é a prática de ações de cunho genocidas contra a maioria de trabalhadores pobres e precarizados em todos os países do mundo capitalista.


Bibliografia

ALVES, G. W. Uma comparação entre a pandemia de Gripe Espanhola e a Pandemia de Coronavirus. UFRGS. Porto Alegre, 2020. Visualizado em 02/10/2020 em: <www.ufrgs.br>

SILVA, D. N. Gripe Espanhola. História do Mundo. 2002. Visualizado em 02/10/2010 em: <www.historiadomundo.com.br>


Nenhum comentário:

Postar um comentário