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terça-feira, 29 de setembro de 2020

As Escolas na Pandemia: fechar para salvar



 (Escrito por Renato Coelho)

Conceitualmente escola é ambiente natural de aglomerações, seja dentro das salas de aula, no recreio, nas quadras, na sala de professores, na cantina, nos corredores, no pátio, nos laboratórios, nos banheiros, no portão e na entrada e na saída. Fisicamente, a própria arquitetura das escolas é projetada para satisfazer espaços para as aglomerações. Além de aglomerações, as escolas tradicionalmente são concebidas para funcionarem como locais de intensos e contínuos contatos, sejam nas brincadeiras no horário do recreio, nas aulas de educação física, nas conversas dentro e fora das salas de aula. Existem múltiplas relações de interatividade no ambiente escolar, as interações entre os próprios alunos, as relações entre alunos e professores, professores e funcionários, funcionários e alunos, funcionários e funcionários, professores e professores. Além de todas essas interações pode-se acrescentar também a interação de todos os sujeitos citados com os pais ou familiares dos alunos. Sem esse universo infinito de interatividade humana não existiria a escola. Escola não pode ser vista apenas como depósito de crianças ou lugar de preparação para o mercado de trabalho. A escola é muito mais do que um espaço de aprendizagem de conteúdos e saberes, é um universo de sociabilidade e humanização. É na escola que as crianças aprendem muito mais do que gramática ou álgebra, geografia ou biologia, é onde as crianças aprendem a conviver em sociedade, descobrem o mundo, amadurecem e interagem com as diferenças. A pandemia do novo coronavirus obrigou o fechamento de todas as escolas no Brasil a fim de se evitar a proliferação e o aumento de contágios pelo vírus Sars-Cov-2. Porém, o que mais parece fazer falta não são os meros conteúdos, as aulas ou as disciplinas curriculares, mas sobretudo essa gama de interações e descobertas que são construídas e apropriadas no interior do espaço escolar. Na escola as crianças descobrem também as várias formas de preconceitos, o racismo, o machismo, a burocracia, a disciplina, o tempo do relógio, o bullying, a meritocracia, as paixões, as reprovações e as variadas formas de poder e de violência institucional. Na escola não existe a liberdade e o descontrole das ruas, nela tudo é controlado e cronometrado, assim como nas fábricas. As crianças aprendem na escola e fora da escola. Porém, na escola existe um saber sistematizado e científico, que é transmitido como legado e herança das gerações e tradições passadas. A escola é um universo complexo e singular. Os relacionamentos nascem, multiplicam e também são ressignificados nas interações escolares, mesmo num sistema educacional marcado pela burocratização, pela hierarquia institucional e violência simbólica, que são as marcas distintivas das escolas na modernidade. 

O fechamento das escolas em todo o Brasil, a partir de março, foi uma decisão necessária e acertada dentro do atual momento de pandemia do novo coronavirus. O governo do Distrito Federal foi o primeiro a decretar o fechamento de todas as  creches, escolas e universidades das redes públicas e privadas no dia 11 de março de 2020 (contraditoriamente o governador Ibaneis Rocha do DF no dia 29 de junho promove a reabertura sem restrições e diz que vai passar a tratar a Covid-19 apenas como uma gripe). Porém, não podemos deixar de destacar que o atual contexto de pandemia está sendo um momento turbulento e traumático para alunos, professores e também para as famílias dos estudantes em geral. Temos observado durante a pandemia que as escolas foram as primeiras instituições a serem fechadas quando do início das chamadas transmissões comunitárias no país, e com certeza deverão ser as últimas a retornarem com as atividades normais. Quando se fala em escola, se fala em intensas aglomerações. As aglomerações e os contatos nas escolas não envolvem apenas o espaço geográfico onde se situam as escolas. A logística de levar o filho para a escola envolve deslocamentos urbanos na forma de transportes públicos (ônibus, trens, bicicletas, carros ou a pé). O início do ano letivo nas escolas mobiliza centenas de milhares de pessoas relacionadas direta ou indiretamente ao pleno funcionamento das escolas. Existe uma correlação direta entre a dinâmica escolar e o aumento do fluxo nas vias urbanas como avenidas, ruas, rodovias e calçadas. Basta lembrarmos do período de férias escolares o quanto o trânsito fica menos caótico e os ônibus e terminais mais vazios do que em períodos normais de aulas escolares. A abertura das escolas implica no aumento da mobilidade urbana e consequentemente de maiores contatos e aglomerações em todas as áreas urbanas do país.

Escola de educação infantil reabre na Europa durante a pandemia


Segundo estudos epidemiológicos, a curva de crescimento exponencial de contágios e mortes no Brasil estaria mais acentuada e acelerada caso não houvesse o fechamento das escolas ainda em março de 2020. A grande discussão atual é justamente sobre o tempo para se reabrirem as escolas e poder assim dar continuidade ao ano letivo. Mas a grande e mais importante discussão não deveria ser essa sobre o retorno presencial das aulas escolares, mas sim sobre as formas urgentes e eficazes de controle da pandemia através de testagem em massa, isolamento, rastreamento e tratamento dos casos positivados da covid-19. Os números da pandemia demonstram que ainda não é a hora de abrirmos escolas públicas no Brasil. E não é à toa que atualmente esse debate toma lugar de destaque principalmente na mídia e nas redes sociais. Um forte fator de pressão que pesa sobre a retomada das atividades escolares é com relação a já iniciada reabertura precoce das atividades econômicas e do comércio em todo o país, que  por sua vez acaba provocando a necessidade das mães trabalharem, e sendo assim, não tem onde deixarem seus filhos durante o período laboral, já que numa sociedade patriarcal e machista como a brasileira, cabe sempre à mulher o papel de cuidadora dos filhos e de todas as atividades domésticas. Aqui surge a pressão oriunda dos grandes grupos econômicos e da grande mídia em geral para a reabertura das escolas, sob um olhar de escola como sendo um mero lugar de depósito de crianças e de preparação para o mercado de trabalho. Porém, a reabertura de escolas deve seguir rigorosos critérios científicos de segurança sanitária e que por sua vez envolvem vários quesitos e protocolos especiais. 

Em primeiro lugar, para se abrirem as escolas na atual conjuntura brasileira, a pandemia deve estar controlada nos estados e municípios onde estas se localizam, ou seja, as autoridades locais necessitam saber com precisão onde se encontra o vírus, e isso implica na realização de testagem em massa de toda a população, isolamento dos casos positivos e o rastreamento de todos os contatos para se ter certeza da quebra da cadeia de contágios do vírus naquelas regiões. As escolas não são ilhas, se o vírus está fora de controle no país, obviamente também estará descontrolado dentro das escolas. Ter o controle da pandemia significa saber onde está o vírus, quais são os cluster e onde se localizam os principais surtos de contágios locais. O chamado índice de transmissão do vírus deve estar abaixo de 1 (Ro < 1), e isso significa que os contágios estão decrescendo ao longo do tempo e que a pandemia não está fora de controle. Não basta criar critérios rigorosos e protocolos sanitários de segurança apenas dentro das escolas como uso de máscaras, álcool em gel, tapetes sanitizantes ou distanciamento social, é necessário estudar o comportamento da pandemia nos bairros, cidades e no país onde se situa a escola a fim de proteger a vida dos alunos, professores, funcionários e de seus familiares. Avaliando a dinâmica da pandemia no Brasil atual, constatamos a falta de políticas públicas coordenadas no combate ao novo coronavírus, a baixa testagem da população, a precarização e sucateamento das escolas, a falta de repasses de recursos para aquisição e instalação de equipamentos de higiene nas escolas, e ainda o planejamento inadequado, o despreparo e a burocratização excessiva das secretarias de educação frente à pandemia do vírus Sars-Cov-2, formam os ingredientes necessários para a manutenção e continuidade do fechamento total das escolas.

Sala de aula com crianças na Europa durante a pandemia


Pesquisas demonstram que grande parte dos professores das escolas públicas são considerados pertencentes ao chamado grupo de risco, também existe um percentual importante de alunos nas escolas públicas com comorbidades e que os tornam mais vulneráveis à covid-19. Além disso, deve-se destacar que culturalmente no Brasil existe uma grande parcela de crianças em idade escolar que vive na mesma casa com familiares idosos ou do grupo de risco (principalmente com avós), o que poderia transformar essas crianças escolares em potenciais transmissoras do vírus Sars-Cov-2 para os seus próprios familiares. Sendo assim, no caso do Brasil não é recomendável ou aconselhável, com base na ciência, a reabertura de escolas públicas ainda em 2020 para realização de aulas presenciais, pois corre-se um grande risco de se criar a chamada segunda onda de contágios, onde milhões de pessoas que se mantiveram isoladas até aqui, e que por isso permanecem sem imunidade, passariam a entrar em contato direto com o vírus, ocasionando uma nova exponencial de contágios e óbitos em todo o país de forma avassaladora.

Apesar de crianças e adolescentes não serem considerados grupos vulneráveis ou de risco, no Brasil, segundo dados do próprio Ministério da Saúde (www.covid.saude.gov.br) já foram confirmadas até maio de 2020, mais de 130 mortes entre crianças e adolescentes, colocando o país em primeiro lugar no ranking de mortes na faixa etária de 0 a 19 anos por causa da covid-19. Além das mortes de crianças, foi constatado até o mês de agosto de 2020 a chamada Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P) em mais de 197 crianças em todo o país. A SIM-P é uma doença inflamatória relacionada à Covid-19 em crianças, e que pode provocar semanas após a infecção pelo vírus, manchas e irritações na pele, febre alta, alterações cardiovasculares, renais, respiratórias, hematológicas e vários outros sintomas também potencialmente graves.

Atividades ao ar livre em escola europeia com crianças durante a pandemia


Tivemos no mundo várias experiências fracassadas de países que tomaram a decisão de abrirem as escolas durante a pandemia, como a França, Coréia do Sul, entre outros, mas tiveram que retroceder e fechar vários estabelecimentos escolares por causa de surtos de contágios pelo novo coronavirus entre alunos, professores e funcionários das escolas. O caso mais  emblemático de fracasso total de abertura das escolas em meio à pandemia é o de Israel. No início do pandemia Israel era tido como modelo no combate e controle do novo coronavirus, com baixa transmissão, isolamento social e testagem em massa da população. O governo de Israel em meados de maio resolve então flexibilizar de forma precoce e aligeirada o comércio e ao mesmo tempo promoveu a reabertura das escolas judaicas, desconsiderando que a taxa de transmissão no país ainda estava superior a 1 ( Ro>1 ) e que o verão na palestina seria muito quente a ponto de obrigarem tanto alunos quanto professores a fecharem as salas de aula  para o acionamento do ar-condicionado. Tudo isso foi o suficiente para o surgimento de vários surtos nas escolas e nas cidades israelenses, e contribuiu para o aumento descontrolado do vírus em proporções catastróficas como demonstram os números da pandemia hoje em Israel.

Surto de Sars-Cov-2 em escolas de Israel


Casos semelhantes ao de Israel também ocorreram em países como a França, onde o governo mudou de postura com relação à reabertura das escolas no primeiro semestre de 2020.

No Brasil temos também o caso emblemático de abertura precoce de escolas públicas  na cidade de Manaus, capital do Amazonas que experimentou taxas elevadíssimas de contágios e de mortes, chegando a atingir a chamada imunidade coletiva, que provocou a desaceleração natural da pandemia de forma catastrófica e desumana, com milhares de mortes, colapso de hospitais e de cemitérios. Manaus sofreu as mesmas consequências da pandemia que atingiu o a região norte industrializada da Itália, que também demorou muito a fechar as atividades de suas fábricas. O fechamento tardio das atividades do pólo industrial de Manaus, onde fica instalada a chamada Zona Franca de Manaus, foi um dos principais potencializadores do cresciento veloz da pandemia na cidade de Manaus e no estado do Amazonas.

No dia 10 de agosto foram reiniciadas as aulas presenciais na cidade de Manaus, localizada na Região Norte do Brasil, a capital que foi a mais atingida pela pandemia no Brasil, com números exagerados de mortos pela escassez de recursos médicos e pela falta de atendimento hospitalar. A abertura das 123 escolas na capital do Amazonas com cerca de 110 mil estudantes, se deu sem o diálogo ou consulta aos professores, alunos e pais de alunos. Na semana que antecedeu a abertura das escolas houveram protestos, ameaças de greves e manifestações de professores que eram contrários à reabertura das escolas em agosto. Muitos preferiam manter as aulas no sistema remoto, porém a Secretaria de Educação Estadual adotou o sistema híbrido com aulas remotas e presenciais, de forma escalonada com 50% das turmas separadas em cada dia. Mesmo adotando medidas de segurança e protocolos sanitários como disponibilidade de álcool gel, máscaras, tapetes sanitizantes, pias com água e sabão e recomendações para adoção do distanciamento social, segundo o sindicato dos professores que representam os docentes da rede pública de Manaus (ASPROM SINDICAL), vários professores e estudantes testaram positivo para a covid-19 em menos de um mês após o retorno das aulas e várias escolas foram fechadas por motivos de novos surtos de contágios pelo novo coronavirus entre alunos, professores e funcionários. E o mais agravante de tudo é que as estatísticas apontam que a partir de agosto os casos de contágios e de óbitos em Manaus e no Amazonas vem subindo novamente, indicando uma provável segunda onda e talvez da mesma forma como aconteceu em Israel, possa ter uma relação direta com a abertura prematura das escolas e o retorno dos alunos às aulas presenciais.

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